Quando J.K. Rowling anunciou aos fãs de Harry Potter que traria aos cinemas umas nova série de filmes baseados no livro Animais Fantásticos e Onde Habitam, os fãs da franquia ficaram eufóricos. Não pela história do magizoologista Newt Scamander (Eddie Redmayne), protagonista da nova trama, mas por trazer como plano de fundo a empolgante juventude do mago Dumbledore (Jude Law) e sua relação conturbada com Grindelwald (Johnny Depp).
Animais Fantásticos/ Reprodução
Vários dos detalhes sobre a história da dupla foram divulgados após a conclusão dos livros, como por exemplo, o fato do futuro diretor de Hogwarts ser gay e de sua relação com Grindelwald ir além do fascínio intelectual, sendo, também afetiva. O público, então, ficou ansioso para ver o desenrolar da paixão de Dumbledore pelo perigoso bruxo, mas uma declaração do diretor David Yates jogou um balde de água fria nessa parcela do público. Yates disse que a sexualidade do único personagem LGBT da franquia não será abordada de forma "explícita" em Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald.
Animais Fantásticos/ Reprodução
Essa revelação do diretor soou como a gota d’água que faltava para muitos dos fãs do universo criado por Rowling. Há mais de uma centena de personagens na trama criada pela britânica e, apesar de conter uma mensagem poderosa sobre respeito e aceitação, existe apenas um LGBT - e isso não fica claro nem nos livros, nem nos filmes, ao passo que relacionamentos entre homens e mulheres ou mesmo pequenas manifestações heterossexuais, como conversas entre os gêmeos Weasley sobre interesses românticos, pipocam ao longo da história. Quando surge a possibilidade de ver algo semelhante com o primeiro e único personagem gay da trama, começam a aparecer barreiras bastante desagradáveis e decepcionantes para uma grande parte do público.
Há um argumento levantado por fãs da escritora que pontua que, como o filme se passa na década de 1920, a homofobia era monstruosamente mais forte e que Dumbledore evitaria ser lido socialmente como homossexual por autopreservação. Antes mesmo de usar a própria narrativa de Harry Potter para quebrar essa lógica, vale lembrar que homofobia ser um problema dentro do mundo bruxo é uma escolha criativa de J.K. Rowling - o universo secreto poderia ser muito mais avançado em questões ligadas à determinados tipos de preconceito simplesmente por empatia (o racismo como nós conhecemos, contra não-brancos, por exemplo, nunca pareceu exatamente um problema no mundo mágico). Mesmo ignorando isso e assumindo que Rowling optou por criar uma sociedade bruxa tão LGBTfóbica quanto a sociedade trouxa, a abordagem precária da sexualidade de Dumbledore não se justifica.
Animais Fantásticos/ Reprodução
Se a trama opta por seguir um caminho onde Dumbledore esconde sua sexualidade em função do preconceito da sociedade, o reflexo disso ainda faz parte da construção da personalidade dele de algum modo. E ser vítima de opressão não seria algo inédito na série de livros e filmes. J.K. Rowling conseguiu passar muito bem ao longo da trama como o fato de Hermione (Emma Watson) ser taxada de “sangue-ruim” por ter nascido de pais trouxas influenciou em sua personalidade.
Ao longo dos livros e dos filmes, a menina interage de maneira orgânica com esse sistema de opressão fictício - ela, ainda muito jovem, se sente mal com ofensas do tipo e, conforme amadurece, passa a ter orgulho da própria condição. No caso de Dumbledore, em momento nenhum algum efeito do provável preconceito sofrido é evidenciado como elemento de construção da personalidade dele.
Outra coisa dita para aliviar a questão da não-representação de Dumbledore como um personagem gay é que David Yates teria falado na polêmica entrevista apenas do próximo filme, deixando margem à interpretação de que a sexualidade do mago ainda poderia ser ao menos citada em algum dos três longas restantes planejados para a pentalogia de Animais Fantásticos. É um argumento que pede, mesmo caminhando para o nono filme do personagem sendo vivido pelo terceiro ator, que o público tenha paciência que, mais cedo ou mais tarde, isso será abordado. A questão é: a sexualidade dos personagens heterossexuais demorou o mesmo tempo para ser abordada?
- Cada filme deve ser situado em uma cidade diferente, diz diretor
- Newt recebe mensagem de Paris em nova foto
- Daniel Radcliffe fala sobre polêmica escalação de Johnny Depp
Vamos pegar um exemplo no meio da infinidade de personagens heterossexuais do universo mágico de J.K. Rowling: Gina Weasley (Bonnie Wright). Desde sua apresentação nos livros, com apenas 10 anos, ela já nutre uma curiosidade sobre Harry Potter (Daniel Radcliffe) que, já em sua segunda aparição, se converte para um interesse amoroso. A irmã mais nova de Rony (Rupert Grint) era apenas uma criança e, antes mesmo de ir para Hogwarts, já tinha a sexualidade explorada como recurso narrativo - Gina era apaixonada por Harry e isso foi, por muito tempo, seu principal traço de personalidade, principalmente nos filmes. Se até Gina consegue manifestar de alguma forma sua orientação sexual na trama tão rapidamente, é no mínimo estranho que Dumbledore, um adulto e, de quebra, o mago vivo mais poderoso, precise de nove filmes - ou mais - para isso.
Quando Yates diz que o longa não mostrará “explicitamente” a homossexualidade do futuro diretor de Hogwarts, há de se parar e pensar se, em algum momento, houve algum tipo de pudor na hora de mostrar a manifestação da heterossexualidade na trama. Em todos os núcleos há casais formados por homens e mulheres. Entre os jovens, há a relação primariamente platônica de Gina por Harry, as relações de Gina e Dino (Alfie Enoch), de Harry e Cho (Katie Leung), de Cho e Cedrico (Robert Pattinson), de Fleur (Clémence Poésy) e Gui (Domhnall Gleeson), de Rony e Lilá (Jessie Cave), de Hermione e Vitor (Stanislav Ianevski), e é claro, de Rony e Hermione - o filme consegue colocar até Neville (Matthew Lewis) apaixonado por Luna (Evanna Lynch), algo que não existia nos livros.
Entre os adultos, há o triângulo formado por Tiago (Adrian Rawlins), Lilian (Geraldine Somerville) e Snape (Alan Rickman), há a obsessão de Bellatrix (Helena Bonham Carter) por Voldemort (Ralph Fiennes), e existem ainda tanto casais estáveis, como Molly (Julie Walters) e Arthur (Mark Williams) ou Lúcio (Jason Isaacs) e Narcisa (Helen McCrory), quanto relacionamentos mais complexos, como Tonks (Natalia Tena) e Lupin (David Thewlis) e até mesmo Hagrid (Martin Bayfield) e Madame Maxine (Frances de la Tour).
Existem, é claro, personagens heterossexuais que não tiveram, ao longo dos livros e dos filmes, a sexualidade explorada - é o caso de, por exemplo, Minerva McGonagall (Maggie Smith) e alguns outros professores. A questão é que o fato de Dumbledore ser o único personagem LGBT em todo o cânone já é demasiadamente problemático, mas se torna ainda pior quando essa característica dele nunca sequer foi mencionada oficialmente em alguma obra da franquia.
Provavelmente a frustração dos fãs seria menor se o caso dele fosse isolado e a trama tivesse outros personagens gays, lésbicas, bissexuais ou transexuais, mas não é essa a situação. Com Animais Fantásticos, J.K. Rowling e sua equipe tiveram a chance de explorar pela primeira vez essa parcela da personalidade de Dumbledore e, deliberadamente, optaram por não o fazer - ou não fazer “explicitamente”.
O que J.K. Rowling tem feito em sua franquia de Harry Potter desde 2007, quando anunciou que Dumbledore era gay após a série de livros ter sido encerrada, é o que a comunidade LGBT chama de queerbaiting. O termo, união das palavras “queer” (significa “estranho”, em tradução literal, mas foi reapropriado pela comunidade LGBT) e “bait” (“isca”), é usado para explicar a prática da indústria do entretenimento de inserir algum tipo de tensão afetivo-sexual entre personagens do mesmo gênero que não chega a lugar nenhum ou anunciar um personagem LGBT que nunca desenvolve essa parcela da personalidade. Com isso, essas produções atraem a audiência que busca diversidade, se autodenominam representativas, mas ficam só na insinuação para não incomodar a parcela conservadora do público.
"Receber ofensas sobre uma entrevista que não me envolve, sobre um roteiro que escrevi, mas que nenhuma das pessoas com raiva leu, que é apenas uma parte de uma série de cinco filmes: obviamente é divertido, mas sabe o que é mais divertido?"
Vale pontuar que é muito importante que existam narrativas LGBTs no cinema que não sejam baseadas exclusivamente na orientação sexual ou identidade de gênero dessas pessoas. Existem vários filmes que se debruçam unicamente nesse traço específico do personagem para contar sua história - e não, isso não é representatividade em sua mais perfeita forma. É preciso a complexidade de personagens heterossexuais, onde a orientação não define todo o seu conjunto de vivências, mas que, pontualmente, define determinados aspectos da sua vida.
O que o cinema tem feito recentemente é usar a ideia de que não existem diferenças significativas entre heterossexuais e pessoas LGBT para inserir nesse segundo grupo qualquer personagem que não desenvolva traços afetivo-sexuais em cena - foi o que aconteceu com a Valquíria (Tessa Thompson) em Thor: Ragnarok ou mesmo com Amilyn Holdo (Laura Dern) em Star Wars: Os Últimos Jedi.
Não é a primeira vez, aliás, que J.K. Rowling faz algo do tipo. Quando lançou a peça Harry Potter e a Criança Amaldiçoada, escrita por Jack Thorne e John Tiffany, muita gente se incomodou com a relação entre Alvo Severo Potter e Escórpio Malfoy ter dado todos os indícios de ser homoafetiva para, em seguida, ambos ganharem interesses amorosos heterossexuais.
Agora, mais uma vez, Rowling permite que narrativas LGBTs sejam suprimidas de sua história - e ainda usa sua conta no Twitter para rebater de forma pouco crítica as reclamações dos fãs quanto a isso. É constrangedor para Rowling deixar que sua trama sobre igualdade tenha assumido o centro de uma discussão sobre ausência de representatividade - mas, pior que isso, é a decepção dos leitores que aprenderam valores como respeito e aceitação através da obra e agora assistem sua autora falhando justamente naquilo que era motivo de orgulho para eles.