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Crítica

Nomadland passeia pelas ruínas da América entre o melancólico e o delirante

Favorito ao Oscar oferece um exercício de conciliação em forma de road movie

15.04.2021, às 11H19.

Com o ônus de ser o favorito ao Oscar, indicado em seis categorias, Nomadland não escaparia das problematizações, parte habitual das campanhas que antecedem a premiação. O fato de ter demorado tanto para o filme de Chloé Zhao virar objeto de polarização na verdade evidencia a falta de tração que marcou o Oscar 2021. No meio da pandemia, nenhum filme indicado parece mover paixões a ponto de gerar um debate esquentado. 

Ainda assim é uma surpresa que tenha demorado, porque Nomadland se oferece prontamente à discussão. De um lado, a história da viúva (Frances McDormand) que escolhe o nomadismo como estilo de vida é uma ode à liberdade, bem sintonizada com a tradição americana do desbravamento do Oeste, a jornada da conquista. Do outro, temos todo esse cenário de capitalismo tardio em que o trabalho precarizado e a crise imobiliária se assentaram de tal forma que já parecem parte da paisagem americana, quiçá um ponto turístico, e os críticos de Nomadland alertam para esse aceno à normalização, que acontece no filme com a benção da Amazon.

Antes de mais nada, vale dizer que daria uma ótima sessão dupla exibir o filme de Chloé Zhao ao lado de Você Não Estava Aqui, de Ken Loach, que já denunciava a uberização dos serviços de entrega e as infames garrafas plásticas de urinar, que se tornaram um incômodo de relações públicas para a Amazon nas últimas semanas. Há evidentemente um ponto a ser feito aí, a respeito da glamurização do trabalho “eficiente”, mas adotar esse viés numa apreciação de Nomadland sem levar em consideração seu oposto seria roubar do filme o que ele tem de melhor, que é justamente essa bipolaridade.

Essencialmente, o filme concilia suas contradições na montagem. Feita pela própria Chloé Zhao e indicada com justiça ao Oscar, a montagem faz mais do que costurar cenas soltas com muitas elipses de tempo e espaço. É a partir dela que Nomadland pode ir e voltar o tempo inteiro em registros distintos: flutuar entre o viver livre e o viver mal, entre o trabalho braçal e o ócio criativo, entre o tédio da rotina e o maravilhamento com a natureza. Em certo momento, a música sobe porque a protagonista se emociona vendo as ondas batendo no litoral, e o filme corta em seguida - sem baixar a música - para a fachada do galpão da Amazon. Fica sendo tudo parte de um mesmo arrebatamento. 

Ou seja, a modulação é feita por Zhao de forma a integrar os opostos como se sua complementaridade fosse a mais sublime, a mais natural. A ideia é que tudo se torne uma coisa só, com um senso de unidade capaz de dar a paz de espírito necessária para enfrentar essa América em dissolução. O império está em pedaços mas, olhando pelo lado bom, que magníficas são as suas ruínas. É outra coisa que Nomadland concilia: passear literalmente por sítios arqueológicos e em seguida abraçar a crença de que pela estrada, por trás das montanhas, haverá sempre um vislumbre de novidade e futuro.

Chloé Zhao nasceu em Pequim em 1982, aos 15 foi mandada pelo pai empresário para estudar no Reino Unido, e depois do internato passou a morar em Los Angeles. O nomadismo está no seu DNA, assim como o industrialismo, e Zhao não escolheria mesmo outro lugar para viver senão a cidade erguida na aridez da Califórnia como um manifesto da força de vontade americana. É compreensível que ela faça um filme como Nomadland, porque o sucesso de qualquer movimento imigratório depende de conceber na própria cabeça uma nova pátria ideal, capaz de bem acolher.

Daí vem a base de filmes como Nomadland, porque esse olhar encantado com o mito da América magnânima pode parecer ingênuo (e não deixa de ser) mas na verdade toda a crença no país como uma coisa unitária, harmônica e minimamente sólida depende desse olhar. Como diz a irmã de Fern ao se referir ao nomadismo, isso “é uma coisa bem americana”. Tudo no filme em certo grau vira algo “bem americano”, seja o road movie, seja o trabalho análogo à escravidão, porque também nessas contradições o país enxerga sua verdade, a federação que foi capaz de acertar na guerra suas diferenças em nome do seu Destino Manifesto.

Se há um diferencial em Nomadland, além da releitura pós-industrial, por assim dizer, da doutrina do Destino Manifesto, é que no filme a grandeza da América não é apenas uma construção do imaginário coletivo. Ela está no Sol que amanhece pela fresta da barraca, no sorriso do bebê, no arranjo e nas cores das rochas: é um valor tão intrínseco à América e aos americanos que se torna um dado do próprio mundo natural. É uma ideia pé-no-chão e ao mesmo tempo absolutamente delirante, e isso Nomadland concilia também.

Nota do Crítico
Ótimo