Quentin Tarantino gosta de dizer que vai parar de dirigir depois de dez filmes, o que força ainda mais uma tendência do público e da crítica de enxergar seus longas dentro do contexto de sua obra. Nesse sentido autorista, Os 8 Odiados (The Hateful Eight, 2015) é interessante porque marca tanto um passo para trás como outro adiante.
Para trás porque, embora comece com um sinistro e estrondoso tema de Ennio Morricone sugerindo um faroeste de travessia com um clímax apoteótico, Os 8 Odiados está mais próximo do filme de câmara que marcou a estreia de Tarantino como diretor, Cães de Aluguel. Este seu novo western funciona como um longo "impasse mexicano" entremeado por vaivéns no tempo, como o longa de 1992. De qualquer forma, o clímax apoteótico continua lá - talvez Tarantino nunca abra mão dele.
A trama se passa alguns anos depois do fim da Guerra da Secessão; as feridas dos Confederados, mais abertas do que nunca. Embora o oficial John Ruth (Kurt Russell) seja o personagem que faz a trama andar, ao levar a fugitiva de justiça Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh) para ser enforcada em Red Rock, é o Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson) o verdadeiro protagonista. O militar negro ainda goza da vitória diante dos escravagistas na guerra, e mostra sempre, para quem quiser ver, a carta que ele recebeu de Abraham Lincoln, supostamente um confidente seu de correspondências.
Quando esses personagens se reúnem a outros tantos numa noite, num armazém, para se refugiar de uma tempestade de neve a caminho de Red Rock, é o Major Marquis - na voz ao mesmo tempo sarcástica e grave de Jackson, o melhor intérprete dos monólogos rebuscados de Tarantino - que se torna o centro da ação, ao redor de quem orbitam figuras-símbolos da formação da identidade do país, do velho colono sulista ao imigrante mexicano. É como se a carta do presidente outorgasse ao major o protagonismo na refundação.
Se todo faroeste americano trata da construção dessa identidade, de levar a ordem aonde não havia civilização (e Django Livre, também com suas cartas assinadas, e com seu zigue-zague hipnótico entre o legalismo e o vigilantismo, não era exceção), Os 8 Odiados problematiza a função da violência como motor dessa construção.
Porque o "impasse mexicano" é como a parábola bíblica do pecado original: basta que um dos envolvidos, com sua arma apontada aleatoriamente, dê o primeiro disparo, dê aquela mordida gostosa na maçã, para que a possibilidade primeira de um acordo fique definitivamente impossibilitada. Desse ato surge um outro acordo, porém, porque adquirir uma consciência do pecado pode ser, para o homem, tanto uma emancipação quanto uma nova responsabilidade.
Esse é o passo adiante que Tarantino dá em Os 8 Odiados, numa caminhada que notadamente vem sendo trilhada à medida em que seus filmes de vingança ficam mais complexos. Se a violência começa comicamente cartunesca (no olho roxo de Daisy que parece desenhado a mão) e passa pela catarse gore (produzida pelo supervisor de efeitos de Walking Dead, Greg Nicotero, velho colaborador de Tarantino), porque afinal de contas o cineasta problematiza a violência sem deixar de usá-la primeiramente como válvula de escape, a impressão que fica, ao fim, é a da melancolia.
É uma melancolia parecida com aquela de Kill Bill, um épico de destruição que termina, depois de quatro horas, com um casal que só consegue lamentar o caminho que trilhou. O choro de desabafo da Noiva ao fim de Kill Bill já deveria servir de evidência, há uma década, para quem ainda acha que Tarantino recorre à violência em seus filmes de forma inconsequente. A diferença em Os 8 Odiados é que, à medida em que se aproxima da sua prometida aposentadoria, Tarantino começa a sentir a tentação do relato testamental, de legar o Grande Filme sobre sua visão de mundo e sobre seu país. O perigo da grandiloquência é o único que de fato ameaça seu oitavo longa.
No fim, talvez esse filme-resumo nunca venha, pela própria natureza cinefílica do diretor, cultor de gêneros acima de tudo. De qualquer forma, Os 8 Odiados não é esse Grande Filme, mas, dentro daquele que talvez seja o banho de sangue mais desregrado na obra do diretor, ao som de Morricone, há tanto um tom de lamento quanto um de consumação.