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Crítica

Gêmeas - Mórbida Semelhança faz terror de nosso maior inimigo: nós mesmos

Reinterpretação do filme Gêmeos: Mórbida Semelhança, minissérie traz Rachel Weisz brilhante em um conto que vai muito além do terror corporal

03.05.2023, às 10H20.

David Cronenberg é um diretor único. Não é à toa que ele é visto como o criador do subgênero do terror chamado body horror. Nele, o asco e o medo são provocados pela violência perturbadora no corpo humano. Um bisturi pode se tornar a mais tenebrosa das armas. 

Por isso, a minissérie Gêmeas: Mórbida Semelhança, do Prime Video, tem uma missão ingrata: reimaginar um dos grandes clássicos do cineasta, lançado em 1988. No filme, Jeremy Irons interpreta os irmãos Elliot e Beverly Mantle, dois ginecologistas que são assustadoramente iguais e diferentes, tudo ao mesmo tempo. A nova versão tem o grande mérito de subverter o conto original para mergulhar mais profundamente no terror que provoca. Sai de cena Irons e entra Rachel Weisz (vencedora do Oscar por O Jardineiro Fiel) - e, além da troca de gênero, há também a mudança de especialidade: as protagonistas agora são obstetras. 

Beverly, a gêmea séria e discreta, tem o sonho de criar uma clínica onde as mulheres possam ter um tratamento mais respeitoso e digno. Já Elliot, a gêmea “má” que abusa das drogas, quer expandir sua pesquisa (ilegal) sobre fertilidade e reprodução humana. Não é apenas isso que elas dividem. De certa forma, as Mantle - tal qual na versão de Cronenberg - não vivem separadas. São metades da mesma pessoa. 

Dois acontecimentos mudam esse caminho. O primeiro é que ambas conseguem o investimento para abrirem a clínica. Ao mesmo tempo, Beverly se apaixona por uma atriz famosa, Genevieve (Britne Oldford), com quem resolve ter um filho - quebrando o equilíbrio entre as irmãs. Logo no primeiro episódio, somos apresentados ao dia a dia delas, com partos normais, cesarianas, incisões de Pfannenstiel e sangue. A repulsa para o espectador não vem da morte exagerada de alguém em cena, mas sim de registros realísticos - ainda que fortes e violentos. Com tudo isso, vem também o design de produção - que cria um ambiente frio e intimidador onde deveria haver humanidade. 

Esse é o primeiro grande terror de Gêmeas: acompanhar uma especialidade da medicina (criada a partir do abuso de uma mulher escravizada (chamada Anarcha Westcott)), que pouco evoluiu em séculos e que se vale do (necessário) respeito à vida para justificar a violação de corpos femininos. A isso somam-se debates sobre o ambiente hospitalar, o preparo dos profissionais da área, o limite da ciência e o aborto.

Sem medo da polêmica, o roteiro joga na cara de Beverly a sua hipocrisia - e, talvez, a do próprio espectador. Afinal, a investidora Rebecca Parker (Jennifer Ehle) não tem papas na língua para criticar o idealismo da obstetra e de outros que querem mudar o sistema enquanto se fazem valer dele. Isso cria uma obra provocativa e inquietante. Os diálogos são tão desconfortáveis quanto as cenas obstétricas. As falas nos fazem olhar para nós mesmos, nos questionando sobre o que pensamos e acreditamos. De certa forma, todos temos um pouco Beverly, um pouco Elliot: cínicos e idealistas. Quando olhamos no espelho, vemos a nossa exata e desonesta duplicata - ou a nossa melhor versão. Sentimos inveja do que não somos e repulsa do que somos. 

É daí que resulta o segundo maior terror da minissérie, quase que como uma versão moderna de O Médico e o Monstro. Fica um gosto de vácuo existencial, de uma crise niilista, em que nossas crenças são destruídas e, por esse motivo, nada mais tem valor. 

Em cena, Rachel Weisz transmite esse desconforto de forma absolutamente brilhante. Elliot e Beverly existem enquanto pessoas diferentes: uma inveja a confiança e a ousadia da irmã, enquanto a outra admira a pureza e princípios da gêmea. O olhar muda - esses mesmos olhos que deixam transparecer o vazio de uma pessoa incompleta. Mas o mérito absoluto é de Alice Birch. Além de criar a série, a produtora também assina o roteiro do primeiro e do último episódio. É ela quem subverte os conceitos originais de Cronenberg enquanto é respeitosa ao principal: esta é uma história cética sobre narcisismo e misoginia. 

Somado a bons truques de fumaça e espelhos, Gêmeas: Mórbida Semelhança é o pior terror que pode existir: aquele sobre nós mesmos.

Nota do Crítico
Ótimo