Divulgação

Séries e TV

Crítica

Reacher volta sentimental e se admite “sociopata do bem” em boa temporada

Inicialmente moroso, ano dois abre mão do mistério para vulnerabilizar o supostamente imaculado herói

23.01.2024, às 16H59.

Herói de guerra condecorado — ex-policial do exército, então incumbido de vigiar e punir a camada mais alta da pirâmide de segurança dos EUA, as Forças Armadas —, Jack Reacher é um aposentado de só 40 e poucos anos que pode dedicar todos os recursos de sua pensão militar, toda a força e vitalidade contidas em seus 1,95m de altura e mais de 100kg de músculos, e todos os seus mais diversos conhecimentos — sobre balística, aeronáutica, mecânica, análise forense, Blues, Rock and Roll dos anos 1970 e quaisquer outras coisas que a trama da vez exigir — para preservar sua liberdade. Como é um herói, entretanto, ele também o faz para ajudar aqueles que cruzam seu caminho.

Esse gigante genial e solitário nunca é sutil; distribui cabeçadas, chutes, socos, tiros e bombas em defesa dos oprimidos, e o faz como se movido por uma justiça absoluta, capaz de redimi-lo de toda a brutalidade sanguinária que impõe aos opressores. É um personagem ao mesmo tempo complexo e simples: superdotado ao ponto de ser totalmente distante da realidade, vive como se fosse qualquer um; é um andarilho, eternamente engajado em uma jornada para conhecer o país que um dia jurou proteger, ajudando quem precisa dele pelo caminho.

Se nas páginas da saga literária assinada pelo britânico Lee Child essa fantasia de liberdade e esse véu de simplicidade que o envolve foram e ainda são esmiuçados bem gradativamente (ao longo de mais de 20 livros), na série de TV do Prime Video a investigação da psique de Reacher se faz de maneira muito mais acelerada. Retratar sem muito peso psicológico e dramático as ações do que é basicamente um sociopata de alta funcionalidade tem peso duplo quando feito imageticamente; pode engajar o público pela celeridade ou aliená-lo. Entra, portanto, a decisão de repetir um acerto da primeira temporada em seu segundo ano: adaptar uma história em que a motivação do protagonista não seja apenas seu senso radical de justiça, nem sua predileção por cometer assassinatos, mas também a vingança — e, assim, aprofundar o entendimento sobre a bússola moral dele.

Enquanto tomou a rota cronológica mais simples para apresentar sua versão do personagem no ano inicial na telinha — adaptando o primeiro livro de Jack Reacher, Chão da Morte (1997) —, o showrunner Nick Santora promove agora um salto temporal providencial para sequenciar a história, bebendo da trama do 11º livro, Má Sorte e Problemas (2007), para colocar o gigante vivido por Alan Ritchson (Smallville, Titãs) novamente em contato com seu passado. Mas, se antes isso acontecia por conta do assassinato do irmão de Reacher, nesta segunda temporada o que motiva as reflexões do protagonista são as mortes repentinas de antigos colegas do exército. A repetição estrutural, entretanto, se finda aí: desta vez, Santora rapidamente abre mão de investir em um mistério longo para priorizar o desenvolvimento psicológico de seu protagonista.

Pense em Batman (2022) e em como Matt Reeves construiu uma trama de investigação pouco surpreendente para o público, mas estimulante ao desenvolvimento de seu personagem-título. Santora faz algo similar no segundo ano de Reacher, que vê o personagem, até então impenetrável, vulnerabilizado não pelos desafios bélicos que se impõem contra ele, mas pelo contato humano com um passado que ele não compreende emocionalmente. Assim como Bruce Wayne, a figura misantrópica de Reacher se beneficia desse conflito para manter-se acima da linha entre anti-herói e herói, mas o custo que isso impõe ao ritmo da narrativa é sentido já na largada do novo ano. Em relação ao anterior, este se arrasta em seus minutos iniciais, incorrendo em repetições irritantes de ganchos fracos que se, sem um mistério pulsante, apoiam-se apenas na violência.

Quem mais sofre com isso é o vilão Shane Langston (Robert Patrick, com direito a piadinha com Sarah Connor e O Exterminador do Futuro), apresentado já no primeiro episódio. Desprovido de qualquer complexidade, e portanto ocupando mais tempo de tela do que o necessário, ele por vezes acaba rendido em cena, parecendo pouco ativo e ainda menos ameaçador — e, por fim, recebendo um desfecho ligeiramente anti-climático. Isso porque o verdadeiro conflito desse novo ano é interno: o de Reacher aceitar se abrir e verdadeiramente colaborar com seus antigos colegas de caserna Frances Neagley (Maria Sten), Karla Dixon (Serinda Swan) e David O’Donnell (Shaun Sipos).

Cada um desses personagens desafiam Reacher de formas diferentes: Neagley traz o calor de uma amizade verdadeira, Dixon impõe ao protagonista o pesar do amor romântico e O’Donnell o tenta com a ideia de uma vida estável e tradicional. O tempo de processamento desses atritos se estende por pelo menos quatro episódios em que Ritchson acentua o ar avoado e distante de Reacher, às vezes parecendo até abobado em cena, para tirá-lo momentaneamente do leme da série.

É uma decisão que incomoda quem espera ver o fortão constantemente na dianteira dos casos que encara, mas que se prova certeira quando a nova temporada enfim engata em sua trama de vingança em equipe. À medida que Reacher aceita a ideia de que, se não pode ser ferido fisicamente, pode sentir dor emocional, Ritchson permite que o imponente colosso da primeira temporada volte com força total, promovendo sua típica carnificina. Agora, entretanto, mais humano; admitidamente um produto complexo do encontro entre uma sociedade militarizada e fascinada pela violência com um código de moral idealista, extraído diretamente da utopia libertária que alicerçou a fundação dos EUA.

A sublimação dessa crítica quase paródica ao próprio sistema que alçou o personagem Jack Reacher ao status de ícone cultural é, de longe, o que mais aproxima a série de TV da obra de Child, até aqui — além do ponto mais forte dessa segunda temporada. É também o que enfim explica, de maneira clara e didática, por que é tão importante para Reacher manter-se à margem do sistema, em sua vida nomádica de pretensa simplicidade. Além de redimir uma trilha sonora que, apesar de sensacional, é insistentemente professoral em relação ao que se vê em tela.

Do encerramento ao som de “Simple Man”, faixa histórica de 1973 do álbum de estreia da banda Lynyrd Skynyrd, ao uso de “Psycho Killer”, o hit máximo de 1977 dos Talking Heads, Reacher tem sua história e seu personagem-título muito bem explicados pelas músicas que pontuam toda a trama. O didatismo continua também no papel que dois novos personagens exercem na série: o policial Gaitano Russo (Domenick Lombardozzi, excelente em pouco tempo de tela), que está ali apenas para alicerçar um até então inédito melodrama, e o mercenário A.M. (Ferdinand Kingsley), que serve para solidificar a transposição às telas da acidez com que Child retrata nas páginas as fantasias militares dos EUA. Ainda assim, isso não prejudica a produção; na realidade, faz bem a ela, já que serve como reforço estilístico e temático ao seu propósito da vez: amadurecer não só seu personagem-título, como também a visão do público sobre ele, abrindo assim horizontes mais amplos para histórias ainda mais ousadas, exageradas e descompromissadas, no futuro.

Assim, ao contrário do que poderia acontecer se não fosse tão bem conduzida, a segunda temporada de Reacher só cresce quando salta do estudo de personagem à ação espalhafatosa. Com direito a helicóptero sendo escalado em pleno voo e montagem melodramática que vê problemas de pessoas trabalhadoras e honestas sendo resolvidos com dinheiro roubado do tráfico de armas internacionais (e, claro, ao som da canção anti-sistema “Beat the Machine”, dos Quaker City Night Hawks), esse novo ano da série se amarra de forma brutal, ocasionalmente piegas, sutilmente nostálgica e inteiramente apropriada. Não à toa, exatamente como seu protagonista escolhe navegar e interagir com um mundo que, embora não entenda perfeitamente, o fascina intensamente.

Nota do Crítico
Bom