“O amor é a única coisa que somos capazes de perceber que transcende o tempo e o espaço”. A fala, que aparece lá pela metade de Interestelar, se infiltrou na cultura pop dessa era das mídias sociais de uma forma que nem sempre foi positiva. No tal do “Film Twitter” (onde quer que ele se refugie hoje em dia), as aspas do roteiro de Christopher Nolan para o épico espacial de 2014 se tornaram símbolo da pieguice hollywoodiana, da megalomania século XXI, do cinemão estadunidense que falha as próprias balizas de “autenticidade”. “É furo de roteiro”, “não faz sentido científico” e “esses personagens jamais diriam algo do tipo”, clamaria o tuiteiro médio razoavelmente ligado à cultura pop por volta de 2014.
Dez anos depois de sua passagem pela tela grande, e um ano depois do triunfo de Nolan no Oscar com o seu Oppenheimer, Interestelar está de volta aos cinemas. O longa estrelado por Matthew McConaughey é relançado no Brasil com a aura de um clássico contemporâneo, algo que pode surpreender diante de sua recepção inicial. Fora dos círculos restritos da cinefilia cult, no entanto, Interestelar conquistou um contingente significativo de fãs na década desde então - muito por sua mistura audaciosa de sci-fi especulativo grandioso (“veja esses astronautas viajarem para onde nunca estivemos antes, e as formas únicas com que isso afeta a linha temporal onde estão inseridos!”) e declaração de amor amarga às famílias que precisamos perder para, justamente, poder salvá-las.
Vale notar, antes de tudo, que o tema estava em alta na filmografia de Nolan na época, e não por acaso - os quatro filhos do cineasta com a produtora Emma Thomas nasceram entre 2001 e 2008. Meros dois anos depois disso, ele fez A Origem (2010), elaborado thriller de ação em que o torturado protagonista (Leonardo DiCaprio) termina decidindo que, desde que possa ficar ao lado de sua família para sempre, tudo pode ser sacrificado - incluindo sua sanidade e seu senso de realidade. Interestelar, nesse contexto, é quase como o outro lado da mesma moeda: diante da possibilidade de extinção da raça humana, Cooper (McConaughey) decide sacrificar seu tempo com os filhos para tentar garantir o futuro deles.
O roteiro de Nolan, apesar de sempre afeito a se explicar um pouco além do necessário, faz bem ao literalizar as consequências dessa escolha ao colocar Cooper e cia. em planetas onde o tempo passa de forma diferente do que na Terra, o que significa que ele perde décadas do amadurecimento dos filhos no que parecem meros minutos para ele. A cena do personagem assistindo às mensagens de vídeo dos filhos Tom e Murph, vividos por Casey Affleck e Jessica Chastain na idade adulta, é talvez a mais devastadora da carreira do cineasta, justamente por dar forma a um pavor arquetípico da paternidade - “eles crescem tão rápido!”, “onde o tempo foi parar?”. Nunca essas angústias foram tão reais quanto traduzidas pelo rosto de McConaughey, no que inclusive segue sendo (se você me perguntar) o melhor momento dramático dele na tela grande.
A partir disso, talvez, seja possível entender a tal declaração sobre “o amor ser a única coisa que transcende o tempo e o espaço” mais como uma expressão de esperança desesperada, uma ideia à qual os personagens precisam se agarrar para justificar seus atos, e menos como um fato científico distorcido pela pieguice de Hollywood. Aí a frase vira parte do discurso do filme, e não do discurso cultural ao redor dele. Interestelar como tragédia cósmica que extrapola o elemento irreversível da escolha do abandono parental - se o Cobb de DiCaprio sacrifica o seu mundo para ficar com os filhos, o Coop de McConaughey sacrifica os filhos para ficar com o mundo. Na dupla A Origem e Interestelar, o Nolan pai de quatro crianças exercita e exorciza as duas possibilidades, talvez buscando um equilíbrio delas em si.
Enfim: entender como Interestelar se tornou o grande clássico de Nolan é concomitante a entender por que tanta gente no âmbito crítico tripudia tanto dele. O triunfo e a bronca estão, ambos, no truque que é emblemático da carreira do diretor, especialista em nos vender um sci-fi com pinta de “sombrio e realista”, um pretenso Arthur C. Clarke para a era do blockbuster contemporâneo, mas esconder dentro dele o que é essencialmente cinema-terapia. Não surpreende, no fundo, que Nolan tenha se tornado o queridinho dessa geração que cultiva uma relação ambivalente com o mainstream hollywoodiano, rejeitando-o em discurso mas sempre procurando nele o que considera ser “de qualidade”. É o fã que de certa forma quer ser enganado, que quer se sentir analítico e objetivo, mas que também continua buscando o que o cinema sempre ofereceu: catarse.
Interestelar escalou até o topo dessa filmografia, contra todas as possibilidades, justamente porque liga muito menos para o que é verossímil ou “cool”, e muito mais para as preocupações e travas emocionais que pode exercitar na tela. A extravagância em serviço da narrativa (e do narrador), e não o contrário. E por ser o filme que melhor encarna esse Christopher Nolan que é o cineasta das ausências, dos sacrifícios, dos delírios de grandeza e suas consequências - e não o cineasta das reviravoltas temporais, da frieza mecânica do plot, como ele é frequentemente (e equivocadamente) pintado -, ele talvez mereça mesmo ser visto como clássico. Pode ser que o amor não atravesse o tempo e o espaço, afinal… mas a arte? Aí podemos pensar no caso.
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