Um dos segredos do sucesso e da influência de O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller, que fez a minissérie de 1986 ganhar contornos de épico, é a forma como o autor lida com várias esferas públicas. Não é só a ação dos super-heróis e o filtro da mídia comentando essa ação; é também a maneira como a vida das pessoas na cidade, no mundo, é afetada por essa ação. Embora nem sempre apareçam fora dos quadrinhos tipo "fala-povo" do noticiário, as pessoas normais também são parte essencial da HQ.
Dark Knight III: The Master Race acaba de chegar à sua metade, com a quarta edição lançada nesta semana nos EUA, e já dá para tirar pelo menos uma conclusão: a terceira minissérie do Batman aposentado de Miller é aquela que resolve de um jeito mais dramático o abismo que separa os "mortais" dos super-heróis. Isso já começou a ficar mais latente em O Cavaleiro das Trevas 2, em 2001, uma vez que a Liga da Justiça ganhou espaço na trama, mas, ao voltar também aos pequenos dramas das pessoas de Gotham em DK3, Miller agora é capaz de fazer melhor essa contraposição.
E o resultado, até agora, é uma HQ que já não tem tanto o que comentar sobre os deuses. Miller faz sua desconstrução dos super-heróis da DC Comics desde os anos 1980, e DK3 os trata como um fato consumado: "No que nós acreditamos não importa", diz a pequena Robin à Comissária Yindel, quando diz que a vontade dos heróis, dos deuses, sempre prevalecerá, e "com sorte essa vontade se equivalerá à nossa". O que Miller tem a atualizar, sim, é o seu olhar sobre o outro lado da moeda: nós, os espectadores do show e fiéis desses deuses.
Existe um fosso aí, que nunca foi maior: o senso de propósito dos super-heróis de um lado, capazes de entender o peso da história, do passado, e do outro lado a população hipnotizada pelo consumo e pelo descarte imediato de informações, presos para sempre ao presente das mensagens instantâneas. O intermediário desse diálogo - o governo, as instituições como a Polícia de Gotham - se perdem nesse fosso. Poucas cenas são tão bem sacadas em DK3 quanto o momento em que o bando kandoriano, botando fogo no mundo, precisa derrubar satélites e interromper as telecomunicações para que as pessoas tirem os olhos de seus celulares e percebam os seus algozes pairando no céu.
É a ironia de Miller tomando a forma não da tradicional porrada mas de uma alfinetada melancólica, assim como a maneira sinuosa com que ele lida com fundamentalismos sem panfletar sua islamofobia. Se tratamos de deuses, afinal, é natural que se fale de religiosidade. E com os deuses obviamente vem o castigo do céu. Então Miller, seu corroteirista Brian Azzarello e o desenhista Andy Kubert podem trabalhar o ponto mais forte da minissérie até agora: a desproporcionalidade da ação dos deuses sobre o nós.
É acima de tudo uma lição de design de cenários, de cenas, de criação de atmosfera e de como retratar superpoderes numa escala que possa nos parecer real e ao mesmo tempo impensável. Quando chega na quarta edição, Kubert já emula com mais precisão o estilo teatral de desenho de Miller, como se a harmonia entre os dois começasse a se afinar. A grandiosidade se estabelece não pela grandiloquência, splash pages ou frases de efeito, como era em DK2, e sim pelas pequenas soluções de arte, como os traços do fogo tomando a cidade ou os anéis de kandorianos cercando seu inimigo.
Ainda na quarta edição, é um show de perspectivas o quadro em que Superman cai à porta da Fortaleza da Solidão, e toda a cena do julgamento consegue traduzir bem a melancolia das escolhas tomadas pelo Homem de Aço. Cabe a Batman um papel muito similar ao nosso, o de espectador, e surpreende que o Homem-Morcego se mostre um personagem em paz consigo mesmo nesta terceira minissérie. Do lado de Superman, aos poucos Dark Knight III se define como a história em que Miller faz as pazes com esse herói tão ridicularizado nas duas minisséries anteriores - e o mais espantoso é que bastam algumas páginas de um Superman desenhado de forma altiva mas também humana, para que isso se concretize.