Cena de A Ordem do Tempo (Reprodução)

Filmes

Crítica

Com A Ordem do Tempo, Liliana Cavani deixa testamento humano e questionador

Aos 91 anos, venerável cineasta italiana faz filme ultrapassado, mas fascinante

13.06.2024, às 08H05.

Liliana Cavani tem 91 anos de idade, e A Ordem do Tempo é o seu primeiro filme em mais de duas décadas (desde O Retorno do Talentoso Ripley, de 2002). É bem possível, portanto, que este seja o último longa-metragem da carreira da diretora, o capítulo final em uma trajetória que perpassa marcantemente seis décadas de cinema italiano, de cinema feito por mulheres, e de cinema de provocação social. Nesse contexto, é impossível não ver A Ordem do Tempo como um filme-testamento, uma última palavra sobre os temas de violência histórica (a “trilogia alemã” de Cavani e especialmente o polêmico O Porteiro da Noite são essenciais para entender o retrato do nazismo no cinema), dúvida metafísica (sua cinebiografia de Galileu, de 1968, segue insuperável) e entrelaços amorosos que assombraram sua carreira até aqui.

Escrito por Cavani e Paolo Costella (Perfeitos Desconhecidos), mas livremente inspirado em um ensaio teórico do cientista Carlo Rovelli sobre a natureza do tempo na física, o filme se estrutura para atacar todas as preocupações da diretora através de diálogos e conexões, fugindo de um plot convencional. Observamos um grupo de amigos de meia-idade se reunindo para comemorar o aniversário de um deles, enquanto um meteoro gigantesco ameaça colidir com a Terra, em um evento apocalíptico que (é claro) se torna o principal tópico de conversação entre eles. Relacionamentos se desenrolam na tela, mas não por revelações e reviravoltas melodramáticas - Cavani prefere mostrar personagens que já sabem quem são e quem amam, mas que só conseguem se mostrar uns aos outros, e à câmera, quando confrontados com o extraordinário.

Assim, o filme claramente se aproxima da confissão, da terapia, da tentativa de uma artista de entender a sua própria relação (em tons religiosos, históricos e sentimentais) com um tempo que ela vê se esvaindo diante de si. E nesse sentido A Ordem do Tempo é tão eloquente e articulado quanto se poderia esperar, dado suas deficiências óbvias e inescapáveis de encenação e subjetividade. Antes de qualquer coisa, como obra que nasce das paranoias de sua autora, este é um filme preso em uma ambientação burguesa, de preocupações filosóficas frívolas e despreocupações sociais reveladoras - a empregada latina do casal protagonista, Isabel (Mariana Tamayo), passa o filme aflita sobre a segurança de sua família no Peru, mas nem por isso deixa de servir café da manhã, almoço, janta e bolo para os convidados dos patrões.

Para além disso, A Ordem do Tempo também é limitado a uma teatralidade por vezes desconfortável, marca não só de uma cineasta criada em um classicismo europeu que nunca a definiu inteiramente, mas sempre foi parte de sua arte, mas também de uma cineasta que não consegue suportar (fisicamente) o cinetismo de outrora. Com seu diretor de fotografia Enrico Lucidi (A Lenda do Pianista do Mar), Cavani contempla rigidamente a beleza do cenário praiano de sua história, não esconde a capenguice charmosa do momento em que os personagens se perdem na dança com uma música de Leonard Cohen, e disfarça falhas de cobertura com a montagem apaziguadora de Massimo Quaglia (Malena). Tecnicamente, enfim, A Ordem do Tempo é um filme frágil - mas até isso parece ser parte do seu discurso, da sua elegia à arte de uma mulher.

E seria fácil dizer que o que temos aqui é um anticlímax, tendo em vista as alfinetadas audaciosas que definiram os momentos mais notórios da carreira de Cavani. Mas, na verdade, as alfinetadas ainda estão aqui, amaciadas pela necessidade física de uma restrição estilística, e pela ponderação cuidadosa de toda uma vida mastigando as mesmas ideias e dúvidas. A Ordem do Tempo se permite incerteza e inconstância, ambiguidade moral e sexual, questionamento teológico… mas também graça e perdão, um tipo de amor baseado na aceitação radical das neuroses que o fez acontecer. Pode ser que seja um filme ultrapassado, antigo, feito com a trepidação de quem sabe ser tudo isso e muito mais - mas, como toda relíquia valiosa, ele merece ser guardado com carinho pelo bem da nossa memória, e para referência do nosso futuro.

Nota do Crítico
Ótimo