Cena de O Estranho (Reprodução)

Créditos da imagem: Cena de O Estranho (Reprodução)

Filmes

Crítica

O Estranho mostra um mundo impregnado de histórias que o progresso quer apagar

Filme gravado no Aeroporto de Guarulhos, ironicamente, faz retrato de partidas e retornos

Omelete
3 min de leitura
25.06.2024, às 16H48.

Quem é apaixonado por cinema, ou por contação de histórias em geral, provavelmente já sentiu aquela melancolia aguda de estar em um local público bem cheio e se perguntar sobre as idas e vindas, as histórias e destinos daqueles que passam ao seu redor. Que filmes, livros, novelas vivem os outros, escondidos dos nossos olhos curiosos? Talvez até para fazer jus ao seu título, O Estranho evoca esse sentimento em duas cenas, que mostram a protagonista Alê (Larissa Siqueira, ótima) observando o movimento do Aeroporto Internacional de Guarulhos, local onde ela trabalha e onde o longa foi gravado, em uma rara concessão a produções cinematográficas.

São pedras de toque importantes do filme - a primeira cena dá meio que o pontapé inicial na trama de fato, após um longo prólogo que mistura vinhetas observacionais de vários períodos históricos da cidade; e a segunda cena chega já perto do final, para marcar uma transformação fundamental na vida da protagonista, que se junta ao transitório intrínseco de Guarulhos ao invés de permanecer na posição desconfortável de rara figura de permanência naquele cenário. E a dupla de cineastas de O Estranho, Juruna Mallon e Flora Diassublinha ambos os momentos com uma escolha estética forte: a câmera da diretora de fotografia Camila Freitas voltada para o chão, acompanhando as malas dos transeuntes de um lado para o outro, até repousar no rosto inquisitivo de Alê.

É essa sensibilidade de traduzir ideias e movimentos narrativos em imagens que perpassa o filme, e que o ajuda a suplantar a estrutura cheia de meandros e desvios escolhida pelo roteiro (também assinado por Dias e Mallon). A força de O Estranho está menos na densidade da narrativa e mais na elaboração considerada das transformações de Guarulhos diante das exigências contemporâneas do aeroporto. Seu olhar cristalino vê a estrutura gigante plantada no meio da cidade como o palco primário do capitalismo globalizado, uma invasão violenta que - na contramão de outros processos coloniais - denomina o território que invade como terra de ninguém, desenraizando comunidades e interrompendo todos os fluxos de vida geracionais, românticos, fraternos, ancestrais (e por aí vai) que existem nelas.

Notavelmente, O Estranho não tem medo de operar quebras estilísticas e tonais para passar essa mensagem. A estrutura em vinhetas independentes que define o início do filme retorna em alguns momentos, conectados à trama principal apenas pela presença desse ou daquele personagem que compõe a rede de apoio da protagonista, e uma abordagem documental bem franca (com entrevistados indígenas falando diretamente com a câmera) assume a dianteira para lá da metade da metragem. Em outro contexto, poderia ser uma experiência desorientadora ou alienante, mas o ritmo contemplativo impresso pelos diretores e a conexão do filme com esse cruzamento de histórias que define o espaço público contemporâneo, especialmente o aeroporto, criam um encaixe tranquilo.

Mais adequado ainda é que o filme escolha contar tantas transitoriedades ao mesmo tempo, quando todo o ponto de sua existência é entender o apagamento de histórias humanas em nome de um progresso sem rosto, sem laços, sem coração. Como o olho curioso que perscruta esse e aquele desconhecido, inquieto com a multiplicidade de rostos e potências, angustiado com uma vida que não se conecta com nenhuma dessas outras que se estendem ao seu redor, O Estranho expressa o que há de mais insustentável nesse mundo em constante movimento, desprendido e desancorado, sempre indo para algum lugar e vindo de outro, deixando tudo o que há de concreto para trás - curiosamente, em cidades construídas… de concreto.

Ele também abraça, no entanto, o poder que a arte tem de olhar e ver (porque são duas coisas diferentes, e a câmera faz a segunda melhor do que o olho nu) essas histórias cruzadas. O seu trabalho mais bonito, no fim das contas, é o de afirmar e sublinhar em ficção o que na realidade já foi sufocado e apagado há muito tempo.

Nota do Crítico
Ótimo
O Estranho
O Estranho

Ano: 2023

País: Brasil/França

Duração: 105 min

Direção: Juruna Mallon, Flora Dias

Roteiro: Juruna Mallon, Flora Dias

Elenco: Larissa Siqueira, Jorge Neto, Antônia Franco

Onde assistir:
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