Filmes

Crítica

A Sociedade da Neve é um retrato impressionante do desespero humano

Representante da Espanha para o Oscar 2024 surpreende pela abordagem psicológica

03.01.2024, às 08H00.
Atualizada em 13.01.2024, ÀS 17H36

Em 13 de outubro de 1972, um avião fretado, transportando jogadores uruguaios de rúgbi para uma partida no Chile, sofreu um acidente sobre o Vale de Las Lágrimas, na Cordilheira dos Andes. No primeiro impacto significativo, a aeronave foi partida ao meio, resultando na morte de 16 dos 45 passageiros – um número que aumentou nos dias seguintes. Ao longo dos anos, os relatos dos sobreviventes do caso, que ficou conhecido como Milagre dos Andes, foram explorados na literatura e no cinema, e estão de volta no impressionante e visceral A Sociedade da Neve, de J.A. Bayona (diretor de O Impossível e Jurassic World: Reino Ameaçado), que está disponível na Netflix e foi escolhido pela Espanha para representar o país no Oscar de 2024.

Com uma sensação de "sem tempo a perder", o filme evita prolongar muito a introdução dos personagens ou o pano de fundo dos acontecimentos. Com pouco mais de 10 minutos, A Sociedade da Neve já transporta o espectador para a sequência aterrorizante do acidente. O trabalho do diretor de fotografia Pedro Luque (Besouro Azul), aliado à montagem da dupla Jaume Marti (Sete Minutos Depois da Meia-Noite) e Andrés Gil (Canção de Ninar), contribui para criar esse momento intenso que retrata a queda da aeronave, onde corpos são esmagados, membros se quebram, e o desespero se reflete nas expressões daqueles que, com sorte – ou azar – testemunharam tudo.

Quem conhece a história do acidente por outros filmes sabe que a experiência assustadora do acidente é apenas o início de uma jornada perturbadora por sobrevivência em meio ao ambiente hostil da cordilheira. Mesmo com esse tom mórbido, A Sociedade da Neve consegue subverter as expectativas sobre o que se espera de um filme-desastre com escolhas narrativas inspiradas.

A primeira delas é explorar bem a dinâmica do grupo como um todo, focando nas relações interpessoais, sempre pautada pela cumplicidade – até porque, segundo os relatos do livro do jornalista Pablo Vierci, La Sociedad de la Nieve, que inspirou a produção, o grupo não brigou uma única vez ao longo dos mais de 70 dias em que esteve perdido. Além disso, o filme, diferentemente de outras produções do gênero, escolhe como narrador onipresente um dos jovens que não sobreviveram à catástrofe, o centrado Numa (Enzo Vogrincic).

Já a segunda decisão consiste em evitar explorar o aspecto gráfico esperado de um filme que trata, essencialmente, de canibalismo. Em vez de focar no gore, A Sociedade da Neve segue por um caminho mais inteligente – porém não menos visceral: o estado psicológico daqueles que são forçados a tomar essa drástica decisão em nome da sobrevivência. O dilema moral dos jovens torna-se ainda mais profundo graças a uma parcela de culpa católica, mas nada é escancarado na tela. O filme evita esse tipo de sensacionalismo, assim como aderir a um humor mórbido ou um misticismo como aquele de muitas vezes dita o tom dos episódios de Yellowjackets, série do Paramount+ com praticamente a mesma temática.

Ainda que pareça oportunismo reviver esse relato – ou pelo menos pareça uma involução na carreira que Bayona esteja retornando a esse tipo de filme-desastre após ter feito O Impossível – A Sociedade da Neve se justifica na comparação com o mexploitation Os Sobreviventes dos Andes (1976), de René Cardona, e Vivos (1993), dirigido por Frank Marshall, com Ethan Hawke e Josh Hamilton. Ao contrário dessas outras abordagens, o longa espanhol consegue reconstruir o drama sem cair na glamorização hollywoodiana e ainda evita a crueza – e o baixo orçamento – da versão latina.

Embora não apresente fatos completamente inovadores e complementares aos relatos dos sobreviventes, Bayona consegue criar um filme de desastre único, com atmosfera e requinte técnico semelhantes a concorrentes recentes do Oscar, como Nada de Novo no Front, da Alemanha, e que ainda termina com uma mensagem surpreendente e edificante de esperança.

Nota do Crítico
Ótimo