Contar histórias é um exercício de escolha, principalmente no sentido que o contador de histórias deve escolher frequentemente quais perspectivas representar diante do manancial interminável de possíveis narrativas que se estendem diante de qualquer premissa. Por isso, até, que All We Imagine as Light se posiciona como um pequeno milagre de cinema - em cada curva perigosa desse caminho, a diretora e roteirista Payal Kapadia mostra ter uma clareza de visão excepcional sobre os olhares através dos quais deseja enxergar Mumbai, a metrópole indiana contemporânea onde localiza grande parte da sua narrativa. E essa clareza é o que resolve o filme, na verdade, em mais de um sentido.
Primeiro, há o ritmo. All We Imagine as Light tem tudo para ser um daqueles dramas independentes de certo valor artístico, mas que se rastejam em suprema presunção por sua metragem (duas horas que parecem muito mais, diria o chavão crítico). Mas, nas mãos de Kapadia e de sua dupla de montadores franceses, Clément Pinteaux e Jeanne Sarfati, essa história sobre o dia a dia de três enfermeiras em pontos definidores de suas vidas metropolitanas adquire um charme singularmente focado, predicado no equilíbrio delicado entre peça de poesia urbana e narrativa social pé-no-chão que ele encontra e segura com obstinação e talento quase inacreditáveis. São duas horas de filme que não te fazem pensar uma vez sequer sobre o fato de o filme ter duas horas (ou menos, ou mais). Ele existe como é, e te convence que não haveria outra forma em que pudesse existir.
Segundo, há o posicionamento. Como conto da Índia contemporânea, tanto quanto como obra de uma jovem artista mulher, All We Imagine as Light se posiciona dentro do contínuo das narrativas culturais que lhe são designadas sem fazer delas um chamariz, um holofote indesejado. É um filme feminista no sentido que conta a história de mulheres, da particularidade indiana e universal de suas vidas, e que se enternece da aliança entre elas como forma de libertá-las de opressões que têm tanto a ver com gênero quanto com classe - ou, para ser menos ingênuo, ao menos tornar a fuga dessas opressões mais suportável, mais possível. E é também um comentário social afiado no sentido em que transforma a dureza e a sedução da grande cidade como ela existe no capitalismo tardio em sua áxis estética, sua ferramenta de estruturação narrativa.
Enquanto o diretor de fotografia Ranabir Das (parceiro de longa data da diretora, inclusive no seu longa anterior, Uma Noite Sem Saber Nada) registra Mumbai em tons severos e escuros, mas sem nunca abrir mão das cores vibrantes que a definem, o design de som do filme emerge as personagens na cacofonia de choros, gritos de desespero e de triunfo que definem a vida urbana. All We Imagine as Light se arrisca brevemente no documentário em seu início, intercalando depoimentos em off sobre os apelos e sonhos que definem Mumbai com imagens borradas da cidade - uma brincadeira que se estende só o bastante para que, quando o filme finalmente repousa na história que quer contar, ele já tenha se feito entender como espelho magnificado de uma realidade. Cinema social como encanto, muito antes de pensar em ser serviço.
E terceiro, é claro, há a poesia. Em certo ponto de All We Imagine as Light, por motivos que fogem do seu controle, as personagens se afastam de Mumbai e se inserem em uma Índia litorânea de rituais e discursos muito diferentes. É o local onde a modernidade de suas propostas de vida colide, na busca de um espaço para respirar, com as tradições nas quais elas ainda estão mergulhadas - e o filme sinaliza essa mudança de cenário… com música. Assinada por Dhritiman Das, a trilha de All We Imagine as Light vira com destreza do piano grave com um quê de jazz que domina as cenas urbanas para uma viola que acena para o rústico sem perder o quê melancólico das complicações contemporâneas. É o jeito oblíquo que o longa encontra para dizer que o agora é inevitável, mas podemos encontrar maneiras de negociar com ele, sobreviver dentro dele.
Em suma: há esperança aqui, e que o olhar cristalino de Kapadia tenha sido capaz de encontrá-la, um pouco apesar e um pouco por causa de si mesmo, é milagroso. Não que qualquer morador de metrópole não esteja familiarizado com esse tipo de milagre, é claro - viver na cidade grande é buscá-lo todo santo dia, com variáveis graus de sucesso. Mas colocar tudo isso na tela grande, no campo místico da ficção onde o irreal é mais real do que a realidade, ainda é um feito e tanto.