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Filmes

Crítica

Guerra Civil entra em convulsão diante das provocações que cria pra si

Alex Garland se indigna com tudo isso que está aí, mas e depois?

06.06.2024, às 13H42.

O road movie é um subgênero que acomoda bem as narrativas episódicas e as casualidades. Uma vez com o pé na estrada, a viagem pode tanto ser pacientemente reveladora de alguma transformação quanto uma montanha-russa de reviravoltas. É uma expressão literal, em outras palavras, da regra de roteiro que diz que um filme deve levar seus personagens do ponto A ao ponto B. O road movie também pode ser muito conveniente para narradores que embarcam numa história sem saber onde querem chegar.

Apesar do título, Guerra Civil está mais para o filme de estrada, em chave pós-apocalíptica, do que exatamente para o filme de guerra. O que Alex Garland está querendo dizer com seu novo longa? Isso não fica muito claro no discurso politicamente opaco do roteirista e diretor; claro, sim, está o ponto de partida: um desconcerto diante da forma desarticulada como a realidade é mediada pela TV, pelas redes sociais e pelo que restou do jornalismo. Nós nos sentimos desconcertados todos os dias, soterrados de informação e desinformação, indignados com tudo, e Garland parece realizar este filme porque se sente como nós. 

Isso pode ser um ponto de partida muito importante e urgente mas obviamente continua sendo apenas um ponto de partida. Guerra Civil segue dois repórteres (Wagner Moura e Stephen McKinley Henderson) e duas fotógrafas (Kirsten Dunst e Cailee Spaeny) de Nova York até Washington para documentar o que está acontecendo no coração político dessa América convulsionada. Eles acompanham as tropas de uma aliança militar que vai depor um presidente golpista; apostamos que, a partir do olhar crítico e sensível dessas testemunhas civis, não apenas a guerra passe a fazer sentido, como a própria realidade.

Ou seja, se Alex Garland entra em marcha sem saber onde seu filme vai parar, isso não necessariamente interdita suas conclusões, porque o olhar do observador (multiplicado por quatro nos personagens a quem o filme se afiança) é um convite à dialética. Na prática, Guerra Civil coloca em pauta não apenas o jornalismo e a mídia mas o próprio cinema (mais precisamente, como a mídia do cinema filtra e nos devolve a realidade), na medida em que fazer um filme de guerra em Hollywood, mesmo com viés pacifista, implica assumir o espetáculo da guerra em si.

Quando postou em seu blog sobre a filmografia de Francis Ford Coppola, o crítico Filipe Furtado frisou que Apocalypse Now evidencia como “o aparato de Hollywood não pode ser usado para fins de guerra sem que se confunda completamente com ela”. Ora, Guerra Civil tem mais similaridades com Apocalypse Now do que Alex Garland talvez conscientize; são ambos road movies (os rios do Camboja na releitura conradiana) de uma ação de guerra a posteriori, com missões “clandestinas” paralelas ao esforço militar (o furo jornalístico aqui, o assassinato de Kurtz no filme de Coppola) em busca de uma figura quimérica que revelará no clímax as verdades do mundo. Apocalypse Now mergulha no paradoxo hollywoodiano para dele emergir transformado. Diante do mesmo paradoxo, Guerra Civil entra em negação.

A expressão dessa negação no filme de Garland é aquela mesma que sempre vemos nos filmes americanos contemporâneos que enunciam uma provocação para se esquivar dela em seguida: o cinismo, a farsa, a autoparódia. Aliás, o único ponto em que o filme esboça um raciocínio claro é quando cria uma escalada de cinismos, saindo do registro festivo do “war junkie” (a cena com o embate no condomínio de edifícios tem o mesmo frenesi delirante dos filmes anti-Vietnã), passando pela comédia absurda (a cena do sniper desconhecido) e chegando ao clímax, que lava as mãos e joga nas costas das fotógrafas o fardo da moralidade enquanto a câmera do diretor faz o jogo de shooter em primeira-pessoa e atende expectativas convencionais do espetáculo tático-militar.

Se Guerra Civil apresenta e descarta personagens com muita facilidade ao longo dessa viagem, isso não é sinal apenas de conveniências de roteiro: é sinal de que no fundo o filme nao sabe bem o que fazer com esses personagens, receoso de dar a eles um ponto de vista digno de um testemunho crítico. Atribuir aos jornalistas uma perspectiva de fato seria o mesmo que tomar partido, tirar conclusões, e Garland encerra a questão tratando o ofício como uma perversão - tanto do viciado em adrenalina quanto da morbidez de se insensibilizar diante do horror. No fim será só mais uma entre inúmeras perversões, num mundo consumadamente perverso e aceito como tal.

Nota do Crítico
Regular