Cena de The Most Precious of Cargoes (Reprodução)

Filmes

Crítica

The Most Precious of Cargoes é drama de Holocausto manipulador - menos na poesia

Trilha estridente de Alexandre Desplat tira esse conto de fadas sombrio do seu eixo

29.05.2024, às 08H31.

Vamos deixar uma coisa clara por aqui: a animação não é um gênero cinematográfico, mas sim um procedimento de fazer filmes (que compreende várias técnicas diferentes, inclusive) capaz de abarcar todo tipo de história e se relacionar com os chavões de todo tipo de gênero. Isso não significa, no entanto, que a escolha de fazer um filme em animação não abra - como a escolha de qualquer outro tipo de procedimento específico de arte - possibilidades específicas para os cineastas que a fazem, implicando em liberdades e limitações que não existiriam no live-action. Nesse sentido, é difícil encontrar um bom motivo para Michel Hazanavicius ter feito o seu The Most Precious of Cargoes em animação.

Há o fato de que a história do filme é apresentada como uma espécie de conto de fadas, com a narração em off do venerável ator francês Jean-Louis Trintignant introduzindo a ambientação rural durante a Segunda Guerra Mundial com a linguagem dos livros infantis, mas a promessa de uma história de temas e horrores muito adultos. Pode parecer um impulso natural ao desenho animado - mas o que não falta no cinema são obras que se aproveitam dessa mistura entre as narrativas mágicas da infância e a concretude do live-action para, justamente, estabelecer o clima de conto de fadas sombrio que querem estabelecer (O Labirinto do Fauno, Desventuras em Série, Edward Mãos de Tesoura, e por aí vai)

E há também o fato de The Most Precious of Cargoes, como adaptado por Hazanavicius do livro de Jean-Claude Grumberg, ser na verdade uma história bastante singela. Apesar da implicação densa de sua ambientação na Segunda Guerra Mundial, e de sua concentração em uma história colateral ao Holocausto, trata-se de um roteiro de ações simples e diálogos despidos de toda sofisticação que considera desnecessária. Até há um eco de O Artista, a obra mais célebre de Hazanavicius, aqui - a experiência do cineasta na emulação do cinema mudo impacta Cargoes na forma como ele estrutura as relações entre os personagens, e suas transformações ao longo da trama, de forma que se apoia muito mais em significadores visuais (posicionamentos, olhares, atos dramáticos) do que falas.

Um conto de fadas singelo não faz uma animação, no entanto. A impressão que fica, com The Most Precious of Cargoes, é que Hazanavicius escolheu a “saída mais fácil” para contar uma história que claramente significa algo para ele, mas não o bastante para que investisse o mesmo - em dinheiro, fisicalidade, capital social - que costuma investir em seus outros longas-metragens. Ou talvez seja uma questão de apelar para o emocional mais básico do público, de desarmar o cinismo com o qual o rótulo “filme de Holocausto” é recebido na atualidade, considerando talvez que a animação (por ser entendida ainda como uma mídia infantil) é mais permissiva com as emoções primárias, o texto literal, a manipulação descarada em que o filme parece se engajar.

Nada mais simbólico disso do que a trilha sonora de Alexandre Desplat. Vencedor de dois Oscar (por O Grande Hotel Budapeste e A Forma da Água), o compositor francês regride aqui a orquestrações fáceis e estridentes, que evocam tragédia e elevação sem traço de graciosidade melódica. Não há melancolia ou aspiração aqui - só choque, choque, choque. Daí talvez venha também o design de personagens grosseiro e prosaico do filme, frequentemente em conflito com a bela evocação dramática dos cenários ricamente desenhados em que eles estão inseridos. Simbólico de um longa muito melhor no esboço das grandes emoções de sua história do que na execução íntima dessas mesmas emoções.

Até por isso, a nota final de graciosidade que The Most Precious of Cargoes reserva para si e para o público está na narração de Trintignant, que troca o professoral pelo poético ao refletir inesperadamente sobre narrativas e existência e inexistência, sobre o amor que se perde no giro imprevisível do tempo e no cinismo implacável do homem. Sobre todo o subtexto que o filme pareceu não reconhecer, com o qual não pareceu disposto a se engajar, em nenhum momento dos quase 80 minutos precedentes. É uma demonstração de insight que talvez Hazanavicius devesse ter feito mais cedo, mas que de qualquer forma colore em tons favoráveis os seus tropeços mais bem-intencionados.

Nota do Crítico
Bom