Nicholas Galitzine e Anne Hathaway em cena de Uma Ideia de Você (Reprodução)

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Crítica

Uma Ideia de Você prega como “elevar” um gênero, mas tropeça no final

Michael Showalter e Anne Hathaway fazem romance que só cede ao cínico no último ato

03.05.2024, às 15H18.
Atualizada em 03.05.2024, ÀS 15H37

Apesar do conflito entre “filme de gênero” e “filme de arte” existir desde que o cinema é cinema, nos últimos anos parece que Hollywood chegou a um momento decisivo dessa separação histórica entre - muitas aspas aí também - baixa e alta cultura. A ascensão do Marvel Studios nos anos 2010 conduziu a uma dominação do cinema de franquia, de ação e de super-heróis entre os grandes estúdios, simultaneamente ao aumento de popularidade da A24 e de seus “gêneros elevados”, cada vez mais traduzida em retornos de bilheteria. Nesse cenário, ficou órfã aquela forma de cinema pop honesta que costumava escapar pelas rachaduras da máquina hollywoodiana - filmes que se aproximavam de narrativas popularescas sem negar seu valor visceral, mas interrogando como encontrar uma voz própria dentro delas.

Em seu melhor, Uma Ideia de Você é um retorno a esse tipo de cinema, e o crédito por isso precisa ir primeiro para o diretor Michael Showalter. Assim como fez com a cinebiografia nostálgica americana (em Os Olhos de Tammy Faye), com o true crime de falcatrua corporativa (em The Dropout), com o romance de terceira idade (em Doris - Redescobrindo o Amor) e com a comédia romântica millennial (em Doentes de Amor), Showalter se aproxima de Uma Ideia de Você com uma visão clara do que ele é: a adaptação de um livro de romance inspirado por uma fanfic do One Direction, na qual a autora Robinne Lee contou a história de um romance entre uma mulher de meia idade (como ela) e o jovem cantor britânico de uma boyband bem-sucedida (como Harry Styles).

Isso significa, principalmente, que Showalter não foge de Uma Ideia de Você como romance de realização de fantasia, como utopia sensual para mulheres “de certa idade”, como comentário meio hipócrita sobre a cultura do fã. Ajudado pelo diretor de fotografia Jim Frohna (Big Little Lies) e pelo montador Peter Teschner (Estrelas Além do Tempo), ele trata de apimentar o seu estilo meio naturalista de encenação com, por exemplo, uma atenção aos detalhes e sensações que aflora nos momentos de pegação entre os protagonistas. Sempre filmadas em um close-up recortado por planos-detalhe rápidos, fotografadas em cores quentes, sem trilha sonora ao fundo, as cenas expressam tanto sobre os personagens quanto sobre o prazer por procuração que essa história oferece ao público.

Também vem de Showalter a forma como Uma Ideia de Você se relaciona com os clichês da fofoca. Se são familiares as poses sugestivas e sorrisos calorosos de Anne Hathaway na mesa de um restaurante italiano com Nicholas Galitzine, capturadas em fotos granuladas por um paparazzo escondido do outro lado do estabelecimento, não é por acaso. O filme de Showalter se engaja em ironia fina quando abraça o escândalo causado pelo relacionamento dos dois, usando a dimensão visual do cinema para elevar - e aqui, sim, o termo faz sentido - uma alusão crítica que a história de Lee já fazia, meio que porque não poderia evitar de fazer, com as manchetes e comentários que a personagem de Hathaway enfrenta quando o namoro com o popstar é revelado para o mundo.

Por falar na estrela de Uma Ideia de Você, aliás, há algo de genuinamente excitante em assistir à performance de Anne Hathaway aqui. Após anos lutando para encontrar espaços onde poderia esticar seus consideráveis músculos cômicos e dramáticos, a vencedora do Oscar se delicia com a oportunidade de agarrar um filme todo, uma mulher toda, para si - e o filme, por sua vez, se delicia em observá-la elaborando as mágoas, incredulidades, inseguranças, derrotas e triunfos dessa mulher. A despeito de todo o seu trabalho de vasculhar ideias de gênero, Showalter frequentemente se vê impelido a pisar no freio e só deixarHathaway atuar. O filme respira junto com ela quando isso acontece, em uma sincronia até meio mágica.

É uma pena, portanto, que Uma Ideia de Você se sinta impelido a abandonar toda essa magia em um último ato que parece até um epílogo adicionado às pressas. Talvez desconfiado da ideia de um final feliz que concretizasse a fantasia da premissa sem alguma concessão às realidades com as quais o filme só se relaciona colateralmente até as últimas cenas, Uma Ideia de Você não consegue evitar um quê de hipocrisia ao fazer seus personagens cederem a sentimentos que passaram incólumes por eles nas quase duas horas que se precederam. Há nessa capitulação algo melancólico, porque presume que o filme precisa ser cínico para convencer o público de seu valor; mas também algo iludido, porque pressupõe que ele tinha alguma chance de decolar como “filme de prestígio”.

São dois adjetivos que não cabem em Uma Ideia de Você, e que ele precise se contorcer para acomodá-los é o testamento de uma indústria que deixa cada vez menos espaço para filmes como este existirem, com todos os prazeres do formulaico e das fantasias projetadas que só o cinema de gênero consegue oferecer.

Nota do Crítico
Bom