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Ousado e original, Pobres Criaturas mereceu Leão de Ouro e deve ir para o Oscar

O 80º Festival de Veneza teve uma boa seleção tratando de temas atuais como as masculinidades e as narrativas que nos dividem

10.09.2023, às 11H16.
Atualizada em 10.09.2023, ÀS 14H46

O Leão de Ouro do 80º Festival de Veneza, encerrado ontem, coloca Pobres Criaturas não só entre os prováveis indicados ao Oscar como também entre os favoritos.O filme de Yorgos Lanthimos tem muitos ingredientes para agradar à Academia: o próprio diretor já concorreu antes (pelo roteiro de O Lagosta e direção e filme com A Favorita), Emma Stone tem seu Oscar na estante, e a ideia de uma criatura feminina que parte pelo mundo em busca de sua emancipação - inclusive pelo sexo - é original e traz uma pauta do dia. Os contras são a quantidade de sexo e nudez, que pode afastar os mais conservadores, e o tom cômico, que não costuma render Oscar de melhor filme.

Mas a sua vitória em Veneza, dada pelo júri presidido por Damien Chazelle, diretor de La La Land - Cantando Estações, não poderia ser menos polêmica. Desde sua exibição em 1º de setembro, terceiro dia do festival, Pobres Criaturas virou uma unanimidade, exatamente por sua originalidade e ousadia.

Foi um bom festival, e o júri premiou bem. Ryusuke Hamaguchi é um cineasta que parece incapaz de fazer filme ruim. Seu Evil Does Not Exist, que ganhou o Grande Prêmio do Júri, é menos ambicioso do que Drive My Car e mesmo Roda da Fortuna e da Fantasia, mesmo assim é cheio de camadas, discreto e coeso, realista e poético, ao falar de uma pequena comunidade japonesa ameaçada por um empreendimento que pode poluir sua água.

Matteo Garrone também mescla a verdade cruel da Odisseia de tantos imigrantes e refugiados com alguma poesia em Io Capitano, que lhe rendeu tanto o Leão de Prata de direção quanto o Marcello Mastroianni de melhor ator jovem para Seydou Sarr. No filme, Sarr é Seydou, um adolescente senegalês que sonha em ser músico famoso. Ele parte com o primo pela travessia do Deserto do Saara e depois do Mar Mediterrâneo. É uma jornada brutal, com muitos percalços, mas tratada com dignidade e delicadeza pelo cineasta italiano.

Outro filme sobre refugiados, Green Border, da polonesa Agnieszka Holland, ganhou o Prêmio Especial do Júri, uma espécie de terceiro lugar. O longa mostra o jogo de empurra com refugiados que chegam de avião à Bielorrússia e atravessam a pé a fronteira com a Polônia, na esperança de conseguir asilo na União Europeia. É um filme extremamente tenso que equilibra o ponto de vista dos refugiados, dos guardas de fronteira, dos ativistas e daqueles que acham que esse não é seu problema.

O chileno O Conde, de Pablo Larraín (No, Spencer, Jackie), foi eleito o melhor roteiro. O filme perde um pouco o fôlego em alguns momentos, mas tem diálogos espertíssimos e uma premissa imbatível – imagine de o ditador chileno Augusto Pinochet não tivesse morrido e fosse um vampiro de 250 anos assombrando seu país até hoje?

Dois americanos ganharam a Coppa Volpi de atuação masculina e feminina: Peter Sarsgaard por Memory, de Michel Franco, e Cailee Spaeny por Priscilla, de Sofia Coppola. Sarsgaard interpreta Saul, um homem com demência que segue Sylvia (Jessica Chastain) e acaba acolhido por ela. Spaeny, de 25 anos, faz Priscilla Presley dos 14 aos 29 anos. É uma boa interpretação e uma das poucas protagonistas femininas desta competição.

A seleção foi bastante centrada nas masculinidades, em homens obsessivos e/ou carismáticos, que muitas vezes deixam um rastro de destruição à sua volta. Como Mads Mikkelsen em Bastarden, de Nikolaj Arcel, um capitão que, depois de servir durante 25 anos, deseja ter um título e terras e se dispõe a explorar uma área inóspita; ou Adam Driver em Ferrari, sobre um homem cuja vida são as corridas de carro; Bradley Cooper em Maestro e o impacto de sua devoção à carreira e casos extraconjugais com homens e mulheres no casamento com Felicia Montealegre (Carey Mulligan); Ou todos os homens de Adagio, de Stefano Sollima, que dizem querer se aposentar de sua vida de crimes, mas não conseguem. Até a Bella de Emma Stone em Pobres Criaturas e a Priscilla de Cailee Spaeny estão na órbita desses homens carismáticos e obsessivos e às vezes tóxicos. Só que esses dois longas contam o ponto de vista delas. 

A competição também girou em torno das narrativas criadas para nos dividirem. Origin, de Ava DuVernay, fala da jornalista Isabel Wilkerson e de sua ideia de que a divisão do mundo em castas explica a opressão aos negros dos Estados Unidos, o Holocausto e a existência de uma classe separada na Índia, os dalit. Os filmes sobre refugiados (Io Capitano, Green Border), pessoas trans (Woman of, de Malgorzata Szumowska e Michal Englert), minorias perseguidas (Lubo, de Giorgio Diritti) também tratam desse discurso de divisão, anti-humanista.

Os cineastas estão respondendo ao que acontece no mundo. E, ao mesmo tempo, dizendo que há algo que pode ultrapassar barreiras, com diversos filmes sobre amor que atravessa o tempo (La Bête, de Betrand Bonello), multiversos (The Theory of Everything, de Timm Kröger), transformações (Woman of), relações extraconjugais (Maestro), estrelato (Maestro, Priscilla). O último grande festival europeu do ano é mais uma prova de que 2023 foi um bom período para o cinema.