A paixão pelo futebol e as provocações sobre o tema advindas da nossa proximidade geográfica não são os únicos elementos que unem brasileiros e argentinos nos últimos séculos. Olhando com algum distanciamento, até parecemos muito diferentes - colonização, idioma, culinária… - mas o sangue nos une, o sangue derramado pelos poderes oficiais durante as ditaduras militares que assolaram os dois países no século passado.
E é sobre o final desse período sombrio que se debruça o longa Argentina, 1985, do diretor Santiago Mitre e lançado mundialmente pelo Prime Video. Mais exatamente sobre o julgamento que colocou no banco dos réus os principais comandantes do regime militar argentino. Em pauta estava a responsabilidade, direta ou indireta, daqueles militares em torturas e mortes de opositores ao regime. Estima-se que, entre 1976 e 1983, até 30 mil pessoas morreram nos porões da ditadura mais sanguinária da América Latina.
A premissa soa árida: como pode um filme discorrer, de maneira interessante, sobre um julgamento duro, que durou meses e sem toda a espetacularização e performances quase teatrais que estamos acostumados a ver nos Estados Unidos (e em seus filmes)? Usando toda a tradição da arte cinematográfica argentina para relembrar ao mundo, e principalmente ao Brasil, a importância da justiça de transição.
A história do país, quase quarenta anos atrás, já tinha deixado claro que não podemos seguir em frente sem que as atrocidades do passado sejam julgadas. Mas Argentina, 1985 chega em um momento em que o filme soa quase como um recado direto ao que está acontecendo no Brasil nos últimos anos. Por aqui, nenhum general foi julgado, quase todos os artífices de crimes de estado foram anistiados e, desde então, todo e qualquer governo civil segue com algum nível de tutela dos poderes militares. Por conta disso, até hoje os mesmos poderes militares se sentem a tal “força moderadora” da nossa democracia.
Agora, o Brasil pode rever seu passado e ter a chance de fazer uma justiça de transição, mesmo que tardia. Não dá para desconectar os ataques sofridos à democracia brasileira que culminaram no 8 de janeiro de 2023 da falta de julgamento ao final da ditadura militar. Se mais uma vez os crimes cometidos, apoiados ou incentivados por militares ficarem sem punição, nosso regime democrático sempre estará em risco.
Cito o discurso final do promotor Julio Strassera, protagonista do filme vivido pelo onipresente Ricardo Darín, e que cabe perfeitamente aqui. “Este julgamento e a sentença que proponho buscam estabelecer uma paz baseada não no esquecimento, mas na memória. Não na violência, mas na justiça. Esta é nossa oportunidade. Talvez seja a última. Senhores juízes, quero renunciar expressamente a toda pretensão de originalidade para este encerramento. Quero usar uma citação que não pertence a mim, porque já pertence a todo o povo argentino. Senhores juízes: “Nunca mais”.”
Com o perdão do leve spoiler (afinal, está nos livros de história), por mais que todos os julgados mostrados no filme tenham saído do tribunal presos, o resultado final foi exemplar para que os argentinos nunca mais se preocupassem com os riscos de algum poder militar tomar o comando do país em um novo golpe.
O Poder de Darín
Soa quase clichê ou repetitivo exaltar o talento e o poder de Ricardo Darín em cena. Apenas ele poderia dar vida a um personagem que, na vida real, não podia ser considerado exatamente carismático (como vídeos e reportagens da época mostram). O ator conseguiu criar uma aura de um herói quixotesco moderno, em uma situação em que poucos imaginariam seu sucesso. Durante muito tempo, nem seu Strassera acreditava nele; o filme deixa claro que ele fugiu, o quanto pôde, de entrar nessa contenda.
A moral dessa história é que, em grandes confrontos como esse, não existe um único herói. Por mais que Julio Strassera tenha sido o rosto desse julgamento, em todos os momentos ele deixa claro que só chegou ali pelo trabalho em equipe, tanto durante a investigação e a reunião de provas quanto na hora de escrever o discurso final que colocou muitos dos ditadores argentinos atrás das grades. O personagem do promotor criado por Darín tem uma potência para inspirar gerações.
Mas o filme não sobrevive apenas em cima da aura do Darín. O roteiro consegue criar um arco de tensão em cima dessa missão quase impossível, deixando isso claro desde a dificuldade de Strassera em montar uma equipe de apoio - tendo de apelar para jovens advogados sem rabo preso com o sistema - passando por todas as ameças que ele, sua família e seu principal assistente, Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani), sofreram durante todo o processo. Por mais que saibamos o resultado final, o longa vira quase um thriller.
Mas o ponto alto de drama reside nos chocantes depoimentos de familiares de desaparecidos e de vítimas de tortura, que servem para deixar clara toda a barbárie praticada. Ao fim, no filme e na vida real, essas falas têm grande peso no resultado do julgamento, já que com elas finalmente os promotores conseguem trazer a opinião pública para o lado deles.
Em um filme que deixa exposto o pior que pode sair das mãos do ser humano, também reside um sentimento de esperança na justiça. Que Argentina, 1985 deixe como legado a lembrança eterna do “Nunca mais” de Julio Strassera.
Ano: 2022
País: Argentina
Direção: Santiago Mitre
Elenco: Peter Lanzani, Ricardo Darín