Filmes

Crítica

O Dublê fica moroso sob o peso do cinema literal e utilitário

David Leitch completa dez anos como diretor reivindicando para si a tribuna

Omelete
4 min de leitura
03.05.2024, às 16H15.

Na primeira meia hora de O Dublê, quando a narração em off começa a ficar muito reflexiva, já dá pra sentir que o filme vai adotar uma receita de noir. No caso, o personagem-narrador de Ryan Gosling talvez esteja preocupado demais com seus pensamentos intrusivos (e não por acaso uma personagem a certa altura o acusa de falar muito sobre si mesmo) para perceber que ele na verdade está caminhando para cair numa cilada típica do gênero.

Tanto a busca pela verdade quanto o trauma do passado que pede para ser redimido são as duas situações básicas do noir a que O Dublê recorre, nessa história sobre um profissional hollywoodiano que ganha a segunda chance de provar seu valor de dublê e seu amor por uma diretora estreante (Emily Blunt). Enquanto acompanhamos as filmagens dessa estreia, o dublê depara com um mistério policialesco envolvendo o astro que ele substitui em cena (vivido por Aaron Taylor-Johnson).

Aderir a essas regras é uma conveniência que o roteiro de Drew Pearce abraça com muita facilidade, porque hoje o noir - um gênero que ao longo dos anos de neonoir se acostumou cada vez mais a falar sobre os bastidores de Hollywood - se inclina naturalmente ao irônico, ao literal e ao autoconsciente. Essa escolha era inevitável? Talvez sim, porque Ryan Gosling já viveu papéis no cinema que eram versões irônicas (Dois Caras Legais) e não-irônicas (Drive) do mesmo dublê-detetive que ele agora revisita.

Viver repetidamente o mesmo personagem exige que você passe a fazê-lo ironicamente? É uma pergunta pertinente, mas nas suas reflexões O Dublê não tem interesse em se debruçar sobre ela - não apenas porque toda a produção pop do cinema americano se adequa ao consumo irônico, mas principalmente porque o diretor David Leitch quer o literal e o autoconsciente trabalhando a seu favor. Ex-dublê que se alçou a diretor no primeiro John Wick (2014), Leitch faz este longa inspirado na série de TV oitentista The Fall Guy para, por meio da metalinguagem, reivindicar uma grife para si. Ele está completando uma década como diretor, é legítimo que se permita essa vaidade. 

É com a finalidade de exaltar a classe injustiçada dos dublês, portanto, da qual Leitch e sua companhia 87North se apresentam como porta-vozes, que acompanhamos este misto de comédia romântica de ação e pastiche de noir envolvendo Ryan Gosling e Emily Blunt. O plano-sequência que abre o filme é feito para indicar que o casal tem química, e a cena da combustão dá o sabor de guerra dos sexos que a dinâmica tensionada exige - e parece ser o suficiente. A partir daí, O Dublê se dedica a sacar soluções rebuscadas para assinalar a metanarrativa e, a exemplo do seu protagonista, passa a falar muito sobre si mesmo.       

Para um filme que poderia ser leve como as comédias românticas ou descomplicado como os filmes de ação, O Dublê pesa na autorreferência. É evidente que os dublês merecem reconhecimento e uma categoria própria no Oscar, mas o literal e o utilitário deixam tudo mais moroso no filme de Leitch - diretor que se sai melhor na simplicidade vigorosa de Atômica (2017) do que no rebuscamento textual de Trem-Bala (2022). Do seu lado, os roteiros de Drew Pearce se expressam melhor quando encontram um cineasta cuja energia está justamente na vocação para o pastiche, como Shane Black (que dirigiu Homem de Ferro 3 com base em roteiro de Pearce e depois trabalhou com Gosling em Dois Caras Legais).

Que a solução "genial" que a personagem de Emily Blunt encontre para seu dilema no terceiro ato seja apenas uma cena de briga em câmera lenta - igual a qualquer blockbuster de ação que não sabe o que fazer com seu terceiro ato - diz muito sobre as limitações do texto de Pearce e de O Dublê como um todo. De resto, ainda que ótimas comédias noir continuem sendo feitas em Hollywood (a exemplo de Um Caso de Detetive ou de Confesse, Fletch), somos assolados por essa realidade em que mesmo um filme de beijos e tiros precisa ter utilidade para que reconheçam seu valor.

Nota do Crítico
Bom
O Dublê
The Fall Guy
O Dublê
The Fall Guy

Ano: 2024

País: EUA

Classificação: 14 anos

Duração: 125 min

Direção: David Leitch

Roteiro: Drew Pearce

Elenco: Aaron Taylor-Johnson, Emily Blunt, Ryan Gosling

Onde assistir:
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