Clint Eastwood foi, por muito tempo, um nome associado a absolutos. Sua posição como cowboy, policial e herói americano definitivo do Século 20 elevou o diretor e ator ao status de ícone. Ele virou a representação máxima da masculinidade, da hombridade, dos EUA. São noções que o próprio cineasta passou a questionar e desmontar, eventualmente transportando sua mira até as instituições da nação. No lugar da garantia, o veterano passou a filmar a dúvida.
Enquanto o Homem Sem Nome da Trilogia dos Dólares se transformou no velho Will Munny de Os Imperdoáveis, Eastwood – em meio a uma dança de cadeiras políticas que culminou, claro, com a cadeira vazia – encontrou no processo do envelhecimento a oportunidade para examinar quem é deixado para trás nos EUA, tipicamente pelo viés libertário. Nos seus melhores trabalhos recentes, como Sully e Richard Jewell, ele apontou para culpados como FBI e a mídia na hora de desmascarar os culpados pelo abandono dos homens que faziam a América ser Grande.
Jurado Nº2, por um lado, continua essa tendência e usa o gênero de drama de tribunal para encontrar as brechas no sistema judicial norte-americano, mas esse grande dilema moral mostra que, aos 94 anos, Eastwood ainda tem muito a dizer sobre as pessoas no centro de suas tramas. Os fracassos dos sistemas ao seu redor jamais inocenta os homens que por eles trafegam. Basta olhar nos olhos azuis de Nicholas Hoult para encontrar o primeiro de alguns paralelos entre personagem e diretor, e o que pode ser o último filme de uma carreira de seis décadas ganha ares de incerteza.
A maior destas é justamente a moral. Apremissa encarregada de levantar esse questionamento é irresistível: Justin Kemp (Hoult) é convocado para servir como jurado num caso de assassinato aparentemente simples. O namorado (Gabriel Basso), um ex-membro de gangues, atropelou a namorada numa noite escura após brigar com ela publicamente num bar. A questão é que Kemp estava no mesmo bar, e também atropelou algo na mesma noite.
Enquanto uma promotora (Toni Collette) vê o caso como a chance de avançar na carreira, outro jurado (J.K. Simmons) identifica buracos no caso contra o acusado e a esposa de Justin (Zoey Deutch) se aproxima do fim de uma gravidez de risco, o roteiro de Jonathan Abrams encontra maneiras deliciosas de complicar a situação – moral e dramaticamente – e cabe a Hoult interpretar alguém incrementalmente desconfortável na própria pele. O ator entrega o melhor trabalho de um ano com grandes atuações (ele é excelente em The Order e Nosferatu), e Eastwood transporta essa ansiedade para a audiência através de um trabalho formal, mas preciso, de enquadramentos bem intencionais.
Quando ele filma, por exemplo, uma cadeira vazia no júri, ou quando transporta seu olhar para a boa e velha bandeira americana no topo de um mastro, é difícil não pensar em quanto significado essas imagens carregam. Assim, não é preciso encher Jurado Nº2 de grandes artifícios para entender o filme como uma retrospectiva, mas isso não quer dizer que ele não tenha algo novo a dizer. A maior qualidade do longa existe na sua capacidade de se carregar em meio a um labirinto de moralidade cinza.
Seria correto Justin se entregar como culpado? Ele não viu o que atropelou naquela noite, e nem nós (Eastwood, sabiamente, nunca revela o que realmente aconteceu). Se for para a cadeia, ele deixará a esposa sozinha com uma recém-nascida. Para a promotora, que defende ferrenhamente a justiça da mulher, uma vitória nesse caso significaria grandes avanços nessa causa, mas até que ponto ela está disposta a ir para vencer? Se o acusado tem um histórico de violência, faz diferença ele não ser culpado deste crime em específico?
Certo e errado praticamente desaparecem, e Eastwood encerra o que pode ser seu trabalho final (tomara que não) com uma pontada de ambiguidade que só intensifica a falta de respostas para essas perguntas. É crucial, porém, notar que Jurado Nº2 não dispensa a verdade. Isto não é Rashomon, com o mesmo acontecimento sendo visto por diferentes lentes. Alguém matou aquela mulher, e as sugestões do roteiro e da direção apontam para uma conclusão. A questão é que a tal verdade, se encontrada, deixará todos desconfortáveis. Todos têm mais a perder do que ganhar com ela.
Aos 94 anos de vida, mais de 60 de cinema, Clint Eastwood se despede de seu mais novo filme com a mensagem de que não há respostas fáceis, caminhos tranquilos e resoluções fáceis. Uma carreira de certezas culmina num golpe de dúvida. O que você faria?
Ano: 2024
País: EUA
Classificação: 12 anos
Duração: 114 min
Direção: Clint Eastwood
Elenco: Toni Collette, J.K. Simmons, Zoey Deutch, Gabriel Basso, Nicholas Hoult
Comentários ()
Os comentários são moderados e caso viole nossos Termos e Condições de uso, o comentário será excluído. A persistência na violação acarretará em um banimento da sua conta.