A Marvel finalmente aceitou o Destino. Desde que começou a se especular que A Dinastia Kang não seria mais o título do próximo Vingadores, e que Kang, o Conquistador seria descartado por conta da demissão de Jonathan Majors, só havia um caminho a seguir no preparo para Guerras Secretas: Doom.
Não é só questão de preferência: os pilares que formam o Doutor Destino, um vilão arrogante o suficiente para se referir a si mesmo na terceira pessoa (e em inglês, com os letreiros de HQ, fica ainda mais dramático: DOOM), são essenciais para a construção de uma história que coloca a inevitabilidade do fim das coisas como a oportunidade ideal para um homem ganancioso virar, literalmente, o deus emperador de toda a realidade.
Nos quadrinhos, Victor von Doom é o rei do país fictício de Latvéria. Um cientista, político e feiticeiro, ele perdeu sua mãe quando pequeno quando uma barganha com Mefisto deu errado, e usa uma máscara porque seu rosto foi desfigurado num acidente científico quando um experimento que ele e Reed Richards, o líder do Quarteto Fantástico, conduziram juntos. Reed e Victor foram amigos quando jovens, mas passaram a ser arqui-rivais com o passar do tempo.
Já nas HQs escritas por Jonathan Hickman e desenhadas por Esad Ribic, as Guerras Secretas são um confronto com seres de múltiplos universos que terminou com um reboot nos quadrinhos, criação de um novo universo Marvel, mas tudo começou com algo chamado Incursão. Essa palavra não foi usada na cena pós-créditos de Multiverso da Loucura à toa.
Na história, um universo foi destruído misteriosamente e começou um processo de colapso de todo o multiverso. Pense como dominós sendo derrubados. Depois que o primeiro cai, o resto segue em fila. Esse impacto entre realidades acontece justamente na Terra. A Incursão é o período de exatamente oito horas entre a aparição de uma Terra no céu da outra e sua colisão fatal. Então, os dois universos são apagados. Se os heróisforem para o ponto da Incursão, é até possível ver o outro planeta se aproximando. Eventualmente, só sobram dois universos, e então nenhum.
É aí que entra o Doutor Destino. Na história que provavelmente será adaptada em Vingadores: Doomsday, Tempo Esgotado, Destino aproveita toda essa confusão para obter poderes inigualáveis e, no fim do multiverso, criar o Mundo Bélico, o universo onde acontecem as Guerras Secretas e onde ele é rei.
Tamanha é a vontade do personagem, o vilão que é tão versado nas magias quanto na tecnologia, tão brilhante quanto capaz de ganhar uma luta. E tudo isso porque ele simplesmente não consegue se olhar no espelho. Victor von Doom é a epítome do homem que tem todas as coisas, exceto uma, e que na busca por preencher esse vazio está disposto a fazer de tudo. É um complexo de inferioridade digno de novela, mas Doom se dá ao melodrama. De todos os adversários dos Vingadores e Quartetos Fantásticos, esse é o menos sútil.
Pelo contrário. Doom é Shakespeare. Doom é teatro. Kang, O Conquistador precisava justificar seus atos de maldade em traumas, mas Destino jamais admite as cicatrizes (tanto é que ele usa uma máscara de metal para escondê-las). Ele se apresenta como um ser perfeito, indestrutível e incapaz de erro. Sua grande rivalidade com Reed Richards vem, em primeiro lugar, porque quando Reed está na sala, Victor von Doom não é o homem mais inteligente.
Mas a falha está ali. Não em suas palavras ou justificativas, mas no subtexto de suas ações. O Doutor Destino já abriu mão do poder de deuses porque estava "abaixo" dele. Em Guerras Secretas, ele só aceitou se chamar de deus emperador quando pôde remodular toda a existência à sua imagem, mas até aí, ele seguiu com a máscara escondendo as marcas que deformam sua face. No lugar de se consertar, e no processo perder a fome insaciável por dominío que o levou a conquistar tanto, ele preferiu transformar os outros em seus vassalos. É como se ele dissesse: "Me aceitem assim porque eu já sou perfeito." Isso, inclusive, é refletido na fantástica última página de Guerras Secretas.
Vilões da Marvel tipicamente figuram entre os heróis de suas próprias histórias (Zemo, Killmonger, Thanos) e os malucos dispostos ao genocídio (Ultron, Loki, Thanos de novo). O Doutor Destino tem um pouco dos dois, mas acima de tudo, ele tem o ego desbloqueado. Suas vontades não precisam ser explicadas por nada além dele mesmo. Ele faz porque ele é assim. Há seres poderosos dentro da mitologia Marvel. Celestiais, alienígenas e deuses. Mas Destino é melhor: ele acredita que pode, e realmente consegue, superar a todos. É claro que ele perde no fim, porque estamos falando de super-heróis, mas até suas derrotas vêm por essa mesma imperfeição — ele nunca se satisfaz, mesmo quando já venceu.
A escolha de Robert Downey Jr. para o papel é, sem dúvidas, inusitada, mas o ator do Homem de Ferro é expert em interpretar egocentrismo. Só o tempo dirá se conseguiremos separar seu Victor von Doom de seu Tony Stark (e se a Marvel vai querer fazer isso), mas para acertar isso, Downey precisa entender o quão obcecado Victor von Doom é por si mesmo, sem o charme cômico de Tony Stark. Dedos cruzados.