Tom Blyth e Rachel Zegler em Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes (Reprodução)

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Crítica

Os Jogos Vorazes continuam, e o único motivo para assistir é Francis Lawrence

Diretor faz A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes brilhar para além do pessimismo repetitivo

05.06.2024, às 10H46.

Quando se fala de “necessidade” ou “razão para existir” no discurso da cultura pop dessas últimas décadas, saturadas de prequels, reboots e spin-offs, perde-se um pouco o ponto do cinema. Acontece que arte nenhuma precisa ter razão para existir - ela é uma razão em si mesma, e imputar a ela uma necessidade tem contribuído para a rotina entediante das grandes franquias hollywoodianas. Um rápido mea culpa, inclusive: o Omelete, e este mesmo crítico que vos fala, definitivamente se deixaram cair nessa armadilha retórica algumas vezes.

Por isso, proponho logo de cara que Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes muito obviamente não precisava existir. Nenhum filme realmente precisa, mas um que explora o passado do antagonista autoritário de uma saga distópica adolescente que já iterou e reiterou toda sua contribuição discursivo-ideológica para a cultura pop em três livros e quatro filmes lançados mais de uma década atrás… bom, esse filme precisa ainda menos. Diante desse descarte imediato do necessário,  sobra então tentar estabelecer o que A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes tem de interessante, o que ele faz bem e quais ideias ele busca explorar ou despertar no espectador.

E me parece que a resposta para todas essas questões começa e termina em um nome só: Francis Lawrence. O cineasta assumiu a franquia Jogos Vorazes a partir de Em Chamas, dirigindo todos os longas que vieram depois (com este, ele soma quatro filmes da saga), mas o domínio indiscutível do universo de Panem é uma parte muito pequena do que faz seu trabalho ser tão integral para o sucesso de A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes - afinal, David Yates também conhece o universo Harry Potter como ninguém, o que não significa que faz bons filmes dentro dele.

Lawrence não poderia estar mais distante de Yates, no entanto. Enquanto o britânico envereda por um academicismo quadradão que neutraliza qualquer vitalidade que suas imagens poderiam trazer, o americano é afeito a jogar o dinheiro provido pelos financistas hollywoodianos na tela e se deliciar com as possibilidades que surgem a partir daí. A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes não é o seu melhor filme, mas é talvez o melhor argumento para a efetividade do seu método: é por causa dessa avidez expressiva de Lawrence que surge deste repeteco narrativo-ideológico um exame instigante do privilégio e da sua primazia diante de toda e qualquer emoção humana.

Afinal, são os roteiristas Michael Lesslie (Assassin’s Creed) e Michael Arndt (outro reincidente da franquia vindo de Em Chamas) quem fazem o protagonista Coriolanus Snow (Tom Blyth) resmungar que sua “amada” Lucy Gray Baird (Rachel Zegler) o traiu depois de tudo o que fez por ela”. Mas é Lawrence, com seu diretor de fotografia Jo Willems, quem o filma de baixo para cima, recortado contra o Sol que se filtra pelos troncos das árvores, rifle em punho tal qual um astro de ação brucutu dos anos 1980 - Rambo à procura de soldados inimigos, Schwarzenegger caçando o Predador. Privilégio encarnado no imaginário violento do cinemão americano, que tanto define a psique do país e, por tabela, do mundo que nele se espelha.

Por entender esse depois de tudo o que fiz por elade Snow não como uma declaração justa e machucada, mas como um retorno - talvez, inevitável - às posições sociais que definiam o tentativo casal lá no começo da história, quando ela era a tributo pobre do Distrito 12 e ele o herdeiro do legado de uma família prestigiada na Capital, o diretor desvela uma história de origem muito mais interessante para o futuro presidente do que aquela que se ensaiava no papel. Esta é a divisão de águas definitiva entre o Snow que poderia escolher o amor e aquele que sempre vai escolher o poder, nos diz Lawrence, e este é o mundo que reforça e recompensa sua escolha, por causa de onde e como ele nasceu.

No dilema entre o tirano monstruoso que já nasceu assim e aquele que foi criado pela sociedade, trabalhado didaticamente pelo roteiro só para desaguar em um pessimismo típico de Jogos Vorazes, Lawrence usa todo o seu poderio estético para propor que o buraco é mais embaixo - que a questão é cultural, mas que a responsabilidade é particular. É uma visão infinitamente mais oportuna para os tempos complexos da contemporaneidade do que o comprometimento sombrio que Lesslie e Arndt extraem do livro de Suzanne Collins, incapaz ou indisposta a se atualizar e evoluir para além de uma pretensa maturidade que pode ter sido surpreendente nas décadas passadas, dentro do espaço da ficção juvenil, mas que pouco impressiona atualmente.

Essa, no fim das contas, é a maior falha de A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes: ela é uma história cansada. Por isso as quase 2h40 de filme incomodam; por isso a queda de pique do terceiro ato faz pensar que talvez fosse melhor terem feito uma minissérie, ou dois longas; por isso o utilitarismo do arco de Lucy Gray, pouco mais do que acessório no de Snow e abandonado na metade, abre espaço para críticas justas de representatividade; por isso que a caricatura macabra de Viola Davis e o retrato minucioso de arrependimento de Peter Dinklage não são o bastante para levantar as partes mais óbvias do filme. 

Porque não há pulso aqui, não há vitalidade, não há vontade de ou matéria para se discutir… a não ser quando Francis Lawrence encontra algo que faz seus olhos brilharem por trás da câmera. Aí, sim, o espetáculo está armado - e se Jogos Vorazes nos ensinou alguma coisa, é que um bom espetáculo é essencial para que continuemos assistindo.

Nota do Crítico
Bom