Uma parte não insignificante das 2h de metragem de Last Days é preenchida por tomadas grandiosas dos cenários naturais explorados pelo seu protagonista, o jovem missionário cristão John Allen Chau (Sky Yang). Com a ajuda do diretor de fotografia Oliver Bokelberg (mais afeito à televisão - ele assinou 68 episódios de Scandal, por exemplo), o cineasta Justin Lin cria uma série de estonteantes cartões postais em movimento, que ilustram o modo de vida aventureiro do personagem central. E pudera: Lin, que foi revelado em 2002 com a comédia independente Better Luck Tomorrow, passou os últimos 20 anos embebido na cultura hollywoodiana dos blockbusters de ação, assinando cinco (sim, cinco!) capítulos da saga Velozes e Furiosos e um Star Trek.
O que quero dizer é que essa linguagem do cinema cartão postal, da aventura paisagista em que cada cena é prefaciada por uma tomada de estabelecimento perfeitamente envernizada, só para jogar o orçamento da produção na nossa cara, é uma que o diretor de Last Days conhece muito bem. Mas há de se questionar os motivos que ele encontrou para aplicá-la nessa história: Chau, no fim das contas, não foi um missionário comum. Em 2018, o jovem criado na igreja evangélica de Oral Roberts foi morto tentando entrar em contato com e converter a tribo de nativos na Ilha Sentinela do Norte, um dos últimos povos não contatados do planeta. O ato não só quebra as leis do território indiano mais próximo da ilha, como também levanta questões éticas sobre a mentalidade colonizadora e xenofóbica que segue bastante enraizada em tantas doutrinas religiosas do Ocidente.
Se a ideia de transformar essa história em uma aventura pontuada pela beleza épica de uma natureza inspiradora parece moralmente duvidosa, vale reservar o julgamento um pouquinho. Essencialmente, Lin entrelaça esse seu cinemão comercial com o roteiro de Ben Ripley (Contra o Tempo), que visualiza a história de Chau como a tragédia de um rapaz que se volta para o senso de comunidade e missão da religião por conta de uma estrutura familiar frágil (não radicalmente fraturada, mas frágil, carente de apoio e diálogo, como tantas são) e um desencanto com as possibilidades convencionais de futuro providas pelo sistema - e o resultado é uma fascinante disputa de estética vs. texto, em que a grandiosidade das imagens hollywoodianas trabalham contra a retórica do protagonista, e não a favor.
Last Days, assim, acaba se estruturando como uma fábula, uma tragédia, e um aviso sobre os perigos da aventura. A vida, parecem dizer Lin e Ripley, não é uma história empolgante - e ficar tentando transformá-la em uma pode facilmente escorregar para uma posição que desconsidera a vontade dos outros. Quando você quer tanto ser o protagonista de um livro épico, todo mundo acaba virando coadjuvante… e descartável, por mais que você jure o contrário. A audácia formal de basear o seu filme nessa dicotomia entre linguagens dramáticas pode passar despercebida de muita gente, mas seria obtuso também dizer que Last Days, por tentar entender a sedução pessoal dos ideais que levaram Chau à seu destino, e tratar esse destino como tragédia (não pela forma como acabou, mas pelos eventos que o levaram até esse fim), subscreve a esses mesmos ideais ou os glorifica.
No fundo, o drama do longa é potente demais para se construir essa conjectura. O foco de Last Days no pai de Chau, interpretado com excelência reservada por Ken Leung (um ator que há muito tempo merece um grande papel como este no cinema), ainda amplia essa tragédia para implicar os pais e responsáveis que, na compacência de basear a experiência dos filhos na sua, não entendem os desafios que eles enfrentam na contemporaneidade e se escondem em um silêncio que também pode ser letal - e, normalmente, é quebrado tarde demais. Em paralelo, ainda por cima, o longa encontra na história dos policiais perseguindo o rastro de Chau (especialmente a jovem oficial lésbica vivida com garra por Radhika Apte) uma maneira de falar do teatro institucional que declara proteção aos povos vulneráveis mas se curva ao impulso das superpotências.
Tudo isso, é claro, com sabor de blockbuster. Que Lin tenha escolhido usar esse léxico para contar essa história, seja propositalmente ou não, é de uma ironia fina, e um acúmulo de significados poderoso. Last Days é um filme melhor e mais eloquente por causa dele.
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